sexta-feira, 19 de janeiro de 2018


Por Osvaldo Felix da Silva




Extrair o diferente do mesmo é uma tarefa que demanda um senso agudo de observação, um empenho de lucidez capaz de sondar aspectos do comportamento individual e social e penetrar no âmago da dispersão moral de nossa época. Assim, os 21 contos de Amortalha, terceiro livro de Matheus Arcaro, podem ser lidos como variações de um mesmo tema, vida e morte, numa concepção essencialmente estética.

O domínio dos instrumentos essenciais à construção da boa narrativa apresenta-se apurado. A língua estilizada associada à estrutura narrativa causa um “estranhamento”, pois apresenta um mundo igualmente estranho, como em Palavras Mudas, em que o estilo seco e impessoal furta-se a explicações e substitui a explicação pela ação, como se as personagens fossem seres sem alma num paradoxal encontro solitário e sem comunicação.

Há outros recursos estilísticos, sobretudo poéticos, aos quais o autor recorre para sugerir uma tensão entre a consciência racional e os impulsos lúdicos da existência, como em “Bete arrasta as sandálias como se precisasse desgrudar uma verdade da calçada”, (Salvação), (“Dona Nenê caminha como se procurasse o passado no piso de madeira:”, (Dona Nenê), “Metade da boca é uma flor às avessas”(A flor) .

A linguagem poética insufla o lúdico (Eros) no contexto da materialidade estéril de um mundo racional e asséptico (Thanatos), conferindo amplitude ao binômio vida e morte. A ironia presente em “Foucault Ficcionista” e “Fora do Ar” aponta, para além da superfície óbvia do humor, nas camadas mais profundas, a presença constante, embora com certo disfarce, da procura por um caminho entre os extremos: de um lado a consciência intelectualizada que enxerga a morte no horizonte da vida e por isso procura refúgio na alienação e, de outro, o jogo lúdico que corre o perigo de aproximar-se do ridículo, mas risco necessário para extrair poesia da realidade. Entre os dois pólos, figura a precária condição humana que oscila entre risos e lágrimas, caminhando sempre pelas estreitas vias da existência. Da certeza da morte e da brevidade dos dias brota certo encanto que confere doçura e profundidade à vida.

A linguagem poética e por vezes intensa do autor faz com que o cotidiano de Dona Nenê ganhe sangue e nervos, e o banal converta-se em essencial, reconhecendo na solidão de uma velha a marca da tragédia humana, traduzida em solidão e abandono. Uma angústia intensa aparece nas páginas de quase todos os contos. Seres desamparados, isolados na solidão, cuja vida assemelha-se a certos quadros impressionistas, pontos miúdos, um pontilhismo que aviva pessoas desintegradas, unidas por uma luz opaca que oculta o brilho da vida. Mas ocultar não significa inexistir. A força da linguagem resgata as personagens da anomia e da dispersão para lhes dar uma unidade na estrutura superior da arte.


A evolução técnica de Matheus Arcaro de seu livro de estréia para o atual é bastante evidente. A linguagem por vezes áspera da estréia está agora maleável e mais cristalina. Graças a esta transparência o leitor pode observar da superfície a profundidade por onde mergulha o autor.

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