quinta-feira, 13 de agosto de 2015


Por Ana Peluso

Deus não sabia, mas acabara de furtar o mundo. Começou furtando idéias a si mesmo. Olhou-se no espelho à sua imagem e semelhança, e num sequestro de seu reflexo, furtou o rosto. Os olhos. Primeiro um, de traços orientais, logo o outro, de ocidentais, e todos os seus derivados. Depois a boca. Na hora, ficou em dúvida do por que existir apenas o lábio fino e o grosso, e fuçando entre os dois, descobriu o verbo. Furtou-o também. Furtou uma das orelhas e a outra. Virando-se a meio perfil descobriu a nuca, o pescoço, notou a coluna, pressupôs o cóccix, alongou-se às pernas, os pés, dedos, e veio furtando tudo de baixo para cima, incluindo um pênis e uma vagina, um ânus, umbigo, mamilos, um murcho, outro cheio, ombros, queixo, bochechas, orelhas e testa, nessa ordem. Quando chegou ao topo da cabeça, abriu-a e furtou-se o próprio pensamento. Foi quando, com exceção do verbo e da visão, descobriu outros sentidos para os objetos e objetivos de seu furto, e o lábio médio.
De imagem em imagem, som em som, sensação em sensação, e o reconhecimento dos sentidos por parte da mente, que parecia, comandava tudo, Deus fez então o mundo. Não demorou nem seis instantes. Não descansou. Em seguida passou a observar o resultado de sua criação.

Logo Deus notou que o mundo era exatamente à sua imagem e semelhança. Exultante, deprimiu-se. Não lhe pareceu satisfatório perceber que inserido em toda a carga genética disponibilizada encontrava-se também o impulso inicial.

Notou que em sua criação tudo se furtava o tempo todo. A água furtava a rocha e a transformava em areia. A rocha, por sua vez, furtava o vento para ter contornos. A luz furtava a sombra, e a sombra à luz. As plantas furtavam a terra, que furtava a água, o ar, e uma boa parte do território. O céu furtava o vazio. Os buracos negros furtavam a realidade, as estrelas furtavam a lógica, os micro-organismos os macros, e os macros, os micros. Tudo furtava tudo para poder existir. E os animais furtavam vidas deliberadamente.  A isso, e a toda a transformação natural de todas as coisas que Deus criara, era dado o nome de Morte.

Ele consultou sua mente, e não obteve o registro.  Seria, então, um oponente, já que não o conhecia?  Deus não se furtou o prazer de se apresentar. Era Deus, o Criador de tudo, e queria saber quem era o Morte. Ele não respondia. Continuava sendo para Deus apenas um misterioso desconhecido, já que não era dado ver o resultado de sua transformação. Mudo, imóvel.

Como poderia em meio à criação, surgir um ente que ele não pensara? Consultou novamente o seu registro que nada acusou. Implicado, tentou desafiá-lo.  Quanto mais vítimas o Morte fazia, mais seres Deus criava à sua imagem e semelhança, alguns agora, previamente concebidos para tentar desafiá-lo.

Num raio de tempo equivalente à quase-eternidade nem um foi bem sucedido. Alguns espécimes que duravam milhares de anos já duravam milhares de anos no exato instante em que o furto inicial rendeu seus primeiros lucros. A vida se furtava desde o início pelo desconhecido Morte, e nada se podia fazer a respeito. Ele, do outro lado, inexistia toda a concepção divina de ideia, advinda do furto primeiro. Era um claro oposto, apesar de obscuro.

Deus então reparou que se não levara nem seis instantes para criar tudo aquilo, já observava a mesma cena há zilhões de anos. Suas crias e a tentativa de conhecer o Morte haviam furtado seu tempo, que de absoluto nada tinha. E o Criador, ainda que razoavelmente deprimido, e por isso mesmo, furtava para si cenas que jamais pensou conceber. E assim ficou por muito tempo, até que um dia, cansado de verdade de tudo furtar a tudo, e Ele a si mesmo para tudo poder existir, e no final terminar tudo nas garras do Morte, que não respondia de jeito algum a tentativa de interlocução, Deus furtou-se ao esquecimento.

Foi quando descobriu que o Morte era, na verdade, a Morte. Tarde demais, amor em branco de primeiro espanto, sucumbiu em seu descanso.
[solve et coagula]


Ana Peluso, 1966, paulistanta, escritora, poeta, webdesigner, participou de algumas publicações (http://anapeluso.tumblr.com/linx) , e é autora de 70 POEMAS, que integra a Coleção Patuscada, premiada com o ProAC – Programa de Ação Cultural da Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo, Editora Patuá, 2014.

0 comentários:

Postar um comentário

Os comentários ao blog serão publicados desde que sejam assinados e não tenham conteúdo ofensivo.