domingo, 15 de abril de 2018


Ilustração: W.A.

Por Luiz Roberto Guedes


     Enquanto foi servidor público, Adalberto Alves Brito tinha exata noção do quanto era desimportante para “seu banco”. Um bagrinho. Tanto que o gerente de conta, José Manuel, apenas apurava seus caraminguás na tela do computador, e mal olhava para ele, sentado lá, impersonalizado, insolvente, pedindo empréstimo em tempo de crise. 
     Agora, o zé-mané era uma seda quando ele aparecia na agência. Sempre sugerindo algum investimento ou tentando empurrar um “segurinho”. Por toda parte, Brito vivia sitiado por vendedores com faro para dinheiro. Como se algo denunciasse sua recente inclusão na casta senhorial dos rentistas. 
     Depois de haver investido por trinta anos em todo tipo de loteria, Brito entrou num “bolão”, com colegas da secretaria de finanças, e tiraram a sorte grande. Racharam um prêmio tão gordo, que cada um embolsou três milhões e meio, limpinhos. 
     — De hoje em diante não tem mais puta pobre nesta cidade! — decretou triunfalmente Sandro Malerba, chefe do setor e organizador do bolão.
     — Good times are back! Sexo! Drogas! Rock’n’roll! – urrou Armando Lopes Leão, um dos felizardos ganhadores da bolada.
     Para Brito, se não era o acesso ao camarote dos supermilionários, era decerto o fim da história para sua crise permanente. Deixou o dinheiro na poupança, botou bermuda e sandália, e dedicou-se a caminhar pela Ponta da Praia, todo fim de tarde. No mais, continuou descasado, morando no mesmo apartamento, com o mesmo Volkswagen Gol desvalorizando na garagem. 
     Sua única extravagância foi comprar bestamente um caniço de pesca de aço inoxidável e uma bicicleta de segunda mão.
     
     Enquanto isso, Armando Leão foi fazer um fly & drive em Miami, de onde retornou com um carregamento de quinquilharias e centenas de fotos. 
     A grade frontal, a traseira, a placa do carro, o painel e os bancos de couro do Camaro vermelho, conversível, que alugou para a road trip até Key West. 
     Mais cliques: placas viárias do percurso, a fachada de uma lanchonete na estrada, a garçonete negra (“Anjanette, uma simpatia”), o hambúrguer com fritas no prato. Fez suspense com a foto de uma big mansão:
     — Sabe de quem é essa casa?
     — Do Emerson Fittipaldi?
     — Do vizinho do Julio Iglesias. 
     — Ué! Por que não fotografou logo a casa do cara?
     — Eu queria, mas um segurança veio correndo e falou que era proibido. Aí fotografei a casa do vizinho.
     Brito não podia crer que um animalão daquela idade jogasse tanto dinheiro fora para ir à Disneylândia tirar foto abraçado com um boneco de Mickey Mouse. Quanto a ele, não tinha um pingo de vontade de ver neve caindo em Nova Iorque, nem botos cor-de-rosa no rio Amazonas. Sua vida seguia no mesmo passo, mas o banco sabia do montante de seu capital, e seu nome caiu em poder de empresas que queriam lhe vender um novo way of life. 
     Virou alvo de uma revoada de envelopes brilhantes, anunciando lançamentos imobiliários de alto padrão ou oferecendo cartões de crédito dourados — especiais para novos-ricos de baixa extração, como ele. 
     Um dia, um urubu agourento veio pousar em seu ombro. Um desses folhetos trazia um blablablá cretino sobre “um investimento que valoriza para sempre, e você não vai pagar nem 1 centavo a mais por isso”. 
     Um jazigo vip, vertical, num “cemitério de Primeiro Mundo”. 
     “Vão à puta que os pariu”, Brito rasgou o folheto. E sentiu a urgência de aproveitar mais a vida. Numa palavra, mulheres. Tinha tempo, dinheiro, disposição, aditivos. Armando Leão lhe recomendou abrir uma página numa rede social porque facilitava contatos que podiam resultar em sexo rápido e descomplicado. Brito conectou-se e puxou pela memória. Rastreou as garotas mais bonitas do seu tempo de colégio. 
     Para sua surpresa, a rede revelou matronas volumosas, com netos no colo, que apenas lembravam o esplendor de uma primavera distante.

     Num sábado, folheando uma revista local na barbearia de sempre, reparou na reportagem Casamento de Princesa. Luxo e glamour na festança da filhota de um tubarão imobiliário. Lá estava Armando Leão entre os convidados, ladeado por uma morena de lábios estranhamente grossos. 
     “Olha o bobalhão se exibindo”, Brito resmungou. No entanto, ficou aceso para saber quem era a morenaça com pinta de modelo. Já em casa, ligou para o amigo, que abriu o jogo:
     — O nome dela é Luanda. Era scort girl da Golden Dreams, um serviço de acompanhantes. Mas a gente se deu muito bem, e agora Lulu só acompanha o papai aqui.
     — E aquela boca? É natural?
     — Ela fez preenchimento labial. Tem muita atriz que faz. Eu gosto. 
     Brito quase falou que aquilo mais parecia uma boca de peixe limpador de aquário. Preferiu perguntar o quê uma moça tão nova e bonita podia querer com um dinossauro esclerosado feito Armando.
     — O pai da Lulu morreu quando ela tinha dez anos. É um lance psicológico, entendeu? Vou te mandar um catálogo da Golden Dreams. Dá uma olhada. Só tem avião. Muitas dessas garotas estão fazendo faculdade. Entram nessa pra pagar os estudos. 

     As mulheres do catálogo de sonhos tinham corpos esculturais, usavam máscaras e nomes como Felicity, Kimberly, Natasha, Princess, Tiffany. 
     Brito não se imaginava acompanhado por qualquer delas, em lugar nenhum. Aonde levaria uma Mulher Maravilha como aquela Kimberly? Pra comer pirão de peixe num restaurante do Canal 5? Nem tinha assunto para entreter uma jovem universitária. Armando Leão era diferente. Tinha presença, charme, gana, pique. Já ele era um sujeito sem graça. Árvore velha, seca, sem fruto. Ex-barnabé zanzando pela praia, toda tarde, vendo o sol descambar atrás da Ponta de Itaipu, lá para os lados de Praia Grande. 
     Continuava nesse passo quando o ex-chefe Sandro Malerba telefonou para intimá-lo: 
     — Brito? Vou fazer um churrasco sábado que vem, na minha chácara do Caruara. Vem uma turma grande que estudou no José Bonifácio, no nosso tempo. Diz que tem uma mulher que quer te ver de novo. Não vá faltar, hein? Não me faça essa desfeita.
     Ele negaceou, não achava seguro dirigir pela Rio-Santos, em seu carrinho decrépito, até o bairro Caruara.
     — Deixe a lata velha enferrujando e pegue um táxi. Na volta, qualquer um te leva. Vou te mandar o mapa por e-mail — o chefão ultimou.
     Brito ficou matutando quem poderia ser a tal mulher que queria revê-lo. Carola Alvarez? Flora Sílvia Jardim? Greta Herzog? Marlova Demarchi? Virgínia Fiorani? Zilda Monzillo? Que nada. As bonitonas nem davam bola para ele no tempo do colégio. Muito menos agora.

     Gordo, calvo e festivo, Sandrão Malerba saudava seus convivas envergando um avental amarelo com a inscrição BBQ Barbarian bordada em vermelho. 
     De relance, Brito calculou umas sessenta pessoas reunidas no gramado extenso, que findava num pomar. Avistou Armando Leão sob um guarda-sol, em companhia da morena de lábios túrgidos, e foi juntar-se a eles. 
     Percebeu que o amigo tinha pintado os cabelos, e parecia ter recauchutado a fachada com botox. O novo Armando: ainda mais jovial. Estava na cara que a moça beiçuda tinha feito muito bem ao fauno sexagenário. 
     Logo, um ex-aluno do colégio, Américo Cortez, um chato inesquecível, arrastou Brito para cumprimentar antigos colegas de classe, obscuros e olvidados. Quando conseguiu escapar das garras de Cortez, refugiou-se entre o arvoredo do pomar. Escutando o vozerio, rajadas de risos, achou tudo aquilo uma tremenda perda de tempo. 
     De repente, um som insólito penetrou seus ouvidos. Provinha de um casal de jabutis copulando à beira do córrego que cruzava o pomar. Encavalado sobre a carapaça da fêmea, o quelônio regougava de gozo. Brito contemplou fascinado aquela foda pré-histórica, até que uma voz de mulher quebrou o interlúdio bucólico:
     — Oi, Beto Brito! 
     Chamavam alguém que ele tinha sido. Sentiu um sobressalto ao deparar com a ruiva opulenta, de cabelos flamejantes e intensos olhos azuis, que o fitava com ar divertido e uma garrafa de Stella Artois em cada mão. 
     — Marília – ela deu uma pista.– Marília Amoreira. Lembra?
     — Marília... Claro. 
     Pegou a cerveja que ela ofereceu e caminharam pelo pomar, retomando uma conversa interrompida trinta e tantos anos antes. Quando se conheceram, ele tinha vinte anos, ela mal completara dezesseis. Tinha dançado com ela num bailinho improvisado, na garagem de um amigo, e beijado a gatinha na varanda, por trás de um renque de samambaias pendentes. Depois, chegou a buscar Marília na saída da escola, à noite, para escoltá-la até o portão de casa. No caminho, paravam numa viela deserta e se beijavam com gula. 
     Ele achava a ruivinha linda e fogosa, mas muito menina. Engolfado pela vida adulta, virou essa página. Tecnicamente, não contabilizava a garota em seu rol de namoradas. Agora, sentados à sombra de uma pitangueira, ele se inteirava da vida e obra de Marília Amoreira. Enfermeira-chefe na cirurgia da Santa Casa, era solteira, vivia sozinha, fazia um curso de cerâmica esmaltada e tinha um gato idoso, Mingau, com câncer, mas não admitia aplicar uma injeção letal em seu companheiro por dezoito anos. 
     — As pitangas estão maduras — ela murmurou. E focou nele a chama azul de seus olhos:—Sabia que você foi meu primeiro namorado?
     Brito não perdeu tempo em convidá-la para degustar uma meca à santista num restaurante chique do Canal 7. No segundo encontro, pedalaram suas bicicletas pela ciclovia ao longo da avenida, e trocaram beijos à beira-mar.
     Na noite do jantar íntimo, em seu apartamento, ele encomendou um delivery japonês.
     — Kampai — Marília brindou, erguendo o massu transbordante de saquê dourado. — A nós.
     E desfrutaram um do outro com a gula rediviva dos tempos da viela escura. 

     Sandrão Malerba foi o primeiro a telefonar para saber se ele andava “espetando a ruiva peituda”. Brito declarou formalmente que tinha recomeçado uma relação com uma namorada do passado. E quando Armando Leão ligou para checar se ele estava “beliscando os frutos da Amoreira”, gabou-se de seu status de primeiro namorado da moça. 
     — Ela disse que nunca me esqueceu — fez questão de sublinhar. 
     — Ó que coisa meiga... Bem que a Luanda falou, aquele dia: “Seu amigo ficou taradão na ruiva de olho azul”. É isso aí, um traste velho que nem você precisa mesmo de enfermeira. — E comentou com alguém ao seu lado:— Não te falei, Lulu? Depois de velho, o sacana deu pra brincar de médico e enfermeira. O amor não é lindo? 
     Brito ouviu ao fundo a casquinada gostosa da morena de lábios pneumáticos.

     Tempos depois, ele constatava que calcinhas e sutiãs coabitavam sua gaveta de meias e cuecas, e vários pares de sapatos femininos tinham migrado para os fundos do armário embutido. Gostou daquilo. Marília devia estar vivendo uma fantasia juvenil. O encantamento dele mesclava desejo, admiração, orgulho, confiança, respeito. Tudo tão diferente da insensatez da juventude. Tinha sido muita sorte encontrar Marília de novo. Ainda em tempo de viver a vida como devia ter sido. Amoreira, amore mio.
     Uma tarde, Brito estava tomando uma água de coco num quiosque do Canal 6 quando Armando Leão surgiu trotando, ostentando seu porte avantajado numa sunga minúscula, que tinha sido moda trinta anos atrás. 
     — Estava mesmo a fim de falar com você. É assunto sério.
     Chupitando um coco verde, Armando comunicou que ele e Luanda pretendiam se casar em breve, a bordo de um navio de cruzeiro que partia de Santos para Salvador, passando por Búzios e Ilhéus. 
     — O próprio comandante vai oficiar o nosso casamento, olha que bacana. Eu e a Lulu queremos que você e Marília sejam nossos padrinhos. Você tem que reservar logo as passagens.
     Na calçada, um molecote magrelo gritou e apontou para o céu. Brito viu o parapente azul e branco, com seu piloto solitário, flutuando sobre os prédios da avenida Bartolomeu, sustido só pela corrente de vento. 
     — Olha que sujeito maluco. Eu não tinha coragem de arriscar meu pescoço desse jeito. 
     — Não me enrole, velhaco. Faço questão da sua presença no meu casório. 
     — Não sei se Marília pode tirar licença da Santa Casa.
     — São só oito dias. E ainda por cima tem show do Roberto Carlos, bicho. De repente, vocês dois entram no clima e resolvem se casar também. São muitas emoções... Vai ser o dinheiro mais bem gasto da sua vida. 
     — Não sei. Esse casamento aí vale alguma coisa?
     — É uma cerimônia simbólica, ô múmia. Vale pela farra, pela recordação. Temos que celebrar o fato de que estamos vivos. Devemos isso a nós mesmos. Pode crer que vai fazer bem pra esse coraçãozinho embalsamado — Armando espetou o indicador no peito de Brito.
     Um cargueiro dourado e vermelho de nome Changsha Star deixava a baía com fileiras de contêineres empilhados no convés feito cubos coloridos. Ereta sobre uma prancha de stand up, uma morena de biquíni amarelo deslizava obliquamente sobre as ondas, manejando um remo longo. O sol poente 
alastrava seu reflexo no oceano. 
     Foi quando Brito se convenceu de que Amore Mio iria adorar a ideia. 
     Aquilo sim, era mais divertido do que abraçar boneco do Mickey Mouse na Disneylândia.

                                                            [04/12.07.2017] [08.01/23.01.2018]


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