Por Flávio Viegas Amoreira
Cedo demais em minha vida foi sempre. Desde esse sempre me
estranhei com a realidade cotidiana, o tempo comum das coisas, a obviedade do
horizonte pintado em cores primárias. Não me encaixo em nenhuma categoria: não
foi um anjo torto, uma legião subversiva de semideuses entregou-me o mundo como
paraíso avesso. Fui alfabetizado pela poesia: antes de ler já sentia sua
possibilidade no medo, no profundo espanto e na sozinhez de todo mergulho: sou
rente ao oceano. Nunca me acostumei com o sofrimento: ele me compactua de
verdade com tudo e todos: nenhuma dor me é o alheio: meu amor é único,
intransferível, rigoroso e dissoluto. No sofrimento a ontologia, a percepção do
absurdo e a tentativa de ainda buscar algum nexo para o que chamam finalidade,
sentido. Meu primeiro super-herói depois de Carlitos foi Gregor Samsa e a
barata de Kafka: assim contar o estranhamento foi por onde me safei da
desistência e ordenei a loucura evidente em tudo. A hipersensibilidade é um dom
e um fardo: nunca persegui, me rendo e acaso. Lá na adolescência lendo
Nietzsche me identifiquei com a vontade do delírio: criei o grande personagem
que me orienta: o Doutor Imponderável. Se tudo redundava em inútil, que fazer
com livre arbítrio? Entre o ato gratuito de Gide e o niilismo criativo
precisava saber onde achar-me perdendo-me.
Só sei escrever: um poeta já nasce inútil para dirigir
automóvel. Ter habilidade para desvencilhar-me de condicionamentos: a infância
me parece até hoje a suprema opressão, a primeira juventude perda de tempo com
passionalidades: cheguei à colina onde deparo com um passado que embalo sem me
escravizar e a velhice só remota possibilidade. Só escrever importa, ser
editado para compartilhar meu testemunho das nuvens e ondas, e prazer nenhum é
maior que conhecer alguma gente que me dê conversa. Sei exatamente o que eu
quero, sem precisar quanto e o modo: escrever e estar sozinho o suficiente é
que definirão tudo. Não sei se cinismo defensivo, mas sinto esmerado em perdas:
todo sucesso é saber suportar e nunca me deslocar do meu presente. Olho tudo de
uma altura e distanciamento não forçados: ter maturidade é não criar
expectativas: não descobri isso feito achado, é algo em que me largo e tudo dá
certo porque se acontece eu me alegro. Tirando meus livros, poemas, músicas,
filmes, toda arte que habito e me purifica, todo resto é natural e engulo seco.
Aborrecer-me é o extremo do tédio: esbravejar é sair de fora do que é essencial
e só esbravejo para não entrarem em minha estranheza. Dói não ser compreendido?
Seria demais ter ilusão de ser compreendido: se fosse eu me acomodava no
consenso. A vida dum escritor “puro sangue”, dedicado totalmente a criar com
prazeres indizíveis e agruras decorrentes do ofício é muito semelhante a um
monge: da mesma forma que as vidas comuns lá fora devem precisar das preces dum
convento, imagino-me monge mundano: alguém precisa ouvir Scarlatti, Boulez e
Keith Jarret, assistir várias vezes todos os Bergmans e Visconti, bem como
fazer “arqueologia literária”: conhecer, revelar, cultivar poetas e romancistas
esquecidos. Nunca imaginei-me com 50 anos e me sinto integrado a meu centro
vital como nunca também imaginaria: só eu sei quanto sou resistente com todo
esse excesso de sensibilidade. Nasci sob a égide da Guerra Fria e a ditadura
militar brasileira: um homem se faz basicamente em atmosfera até os quinze
anos; cresci com temor de um conflito atômico planetário e a repressão política
e comportamental. Quando o regime dos generais sucumbiu no Brasil e o Muro de
Berlim punha fim a divisão ideológica do pós-guerra, uma sombra tão terrível
irrompia: a pandemia de AIDS. Foram três movimentos que me marcaram e moldaram:
última fornada existencialista, forjei-me num movimento libertário pendular
entre epicurismo desinibido e experimentalismo beatnik: não tenho crenças, só devoções. Ter um ideal de vida e não
fazer concessões nem que para isso tenhamos que pagar o preço da solidão: a
busca me torna indiferente a tudo sem desistir do sonho total: estar no mundo
sem deixar-se contaminar dele. A Beleza e a gentileza dela comigo, a Literatura
como expressão dessa Beleza me fazem algo assim como Aschenbach de Morte em Veneza de Thomas Mann e Blanche
Dubois de Tennessee Williams. Liberto, sigo as veredas para o poema preciso, o
conto justo, o romance plausível e o monólogo revelador: desnudo-me. Preciso
explorar cada canto da jaula antes de ter certeza de que ela não é tão grande
quanto minha vontade diante do universo. Para escrever, eu vivi.
As dificuldades amorosas, os impedimentos sexuais, ainda o
sonho socialista, ainda lembrando os que tombaram por preconceitos e pela AIDS,
ainda esperando que a humanidade tenha alguns séculos de sobrevivência: é tudo
tão visível e miraculoso...
Algumas epígrafes me acompanham faróis e reproduzo a que
significa tudo que pretendo seja a missão dum artista da palavra...
(...) agora eu sei, Costia, agora eu compreendo que o essencial em nossa profissão – tanto faz que seja no palco ou na literatura- o essencial não é a glória, nem a fama, nem nada daquilo com que eu sonhava, e sim saber agüentar com paciência... saber carregar a cruz e ter fé. Eu tenho fé, e já não sofro tanto; e quando penso em minha vocação, não tenho medo da vida.
Trecho de A Gaivota
de Tchéchov traduzido por Barbara Heliodora que usei faz muitos anos atrás na
abertura da reunião de poemas A
Biblioteca Submergida .Vou seguir contando esse meio século: é dever do
poeta expor arcabouços de suas metáforas e sinto a fortuna de testemunhar que
vale a pena o sacrifício de renunciar a tanto para conquistar o inumerável da
literatura.
Hoje, tenho muito o que fazer;
devo matar a memória até o fim.
Minha alma vai ter de virar pedra.
Terei de reaprender a viver.
diz o poema de Anna Akhmátova
A memória renasce de Shiva e do que fui uma flor se esgueira
pelas pedras que removi para dizer a vocês o escritor que construí para mim...
Não se engana aos cinquenta...
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