segunda-feira, 25 de julho de 2016

Por Flávio Viegas Amoreira

I
Estátua romana do século II representando Dioniso
de acordo com um modelo helenístico (Louvre)
no verbo já sem descanso

surge nobre da inorgânica harmonia

decantada a vinha

em estado hibernal de seca

florescendo em haste ao cálamo

vivaz primaveril eivada de sol

túmida como gestação botânica do mundo

ao estio de diáfana brisa

fecunda: ainda informe sulco

cálida sem precipitar-se cacho

ao fervor do Tempo /

vai tal corda serena da cítara haurindo

o dom futuro estado de flor em simetria

já sagrado fruto


II
A metamorfose ígnea

em verdejantes pomos

doura uvas brancas

do rubi tingindo tinto

gomos de mais rascante gosto

decantada qual verbena liquefeita

que de Eva cobrindo a vulva em manto

tórrido amálgama jaz em álcool

polpa, sementes e cascas

do mosto às cubas

vai gestando vinho

sutil encanto e acabamento


III
Nunca a razão de real

encontra o fato,

só em dionisíaco êxtase

forjamos no peito noite e aurora

báquico transe de amor em fermento

universo sem sombra ou tédio

se tudo do farto ao vazio concorre

por Eros tocado de todo amor possível

o corpo ferve qual cântaro borbulhante

o cosmo ébrio em nosso enlace amanhece

anunciando de Ganimedes a Zeus todas as primícias

madrigais em ramas dissuadindo em ti bebedor o

desencanto...


IV
Siderado vaga Baco do Estige

ao Eufrates e Ganges aspergindo

o sagrado néctar feito Apolo ensandecido

sentidos incertos / apoucado senso

de alegria contagiando seguido em cortejo

faunos e bacantes

alçar remotos mares e precipitados montes

velejando o sinuoso fado de transidos barcos

ao destino de rumorosos ventos

saudando em bojudas taças do vinho rubro

sorvendo as bagas náuticas, doce veneno

eivado de Zéfiro força aos goles sem mais

nenhum tormento cause rubor vítreo / olímpica erva


V
Aquele que da violácea seiva

goza e entorna / sob a égide de Urano ou pássaro etrusco

deita à Alma celestial sangue preexistente / mântrico

eterno das esferas / cavalo alado azul purpurado

o vinho é "erastes" fraterno / amante fecundo do desejo

terno na fragância / de ninfas e efebos, sedutor

impetuoso tal centauro e sileno

aos iniciados na paixão transtorna

ao sábio, amor apascenta

virado em anjo ou sátiro

cananeu ou fáustico

hebreu ou mefistofélico

contêm no âmago profano eco

entoando o cântico de todos cânticos


VI
Da Borgonha ao Douro

pende solitária e intrépida

a rosa guardiã de preciosa beleza

sustenta o vinhedo feito rouxinol canoro

perfume sem buquê : dorida lida

só a rosa espanta da videira amargor

e da vida azedume infame


VII
Odes, sonetos e alexandrinos

inebriados poetas / sibaritas

epicuristas nas primícias do verso

o vinho toca címbalos que retinem até

os monastérios com seus diáfanos anacoretas

torpor é o mesmo nas faces lascivas

das damas recatadas às madrugosas de vida airada

em cada boca o paladar contenta desde amor heróico

romântico, aos mais viciosos ímpetos fesceninos

VII
Na gravura impressa como carvalho a uva

o detalhe no papel de escorço molda vinco mais perfeito

que o viço natural da folha / a estrofe empenha-se fixar

expressão aproximada do sabor que foge assim que a

tristeza espanta do espírito com vinho como ao vate a

palavra justa ; feito o pomar tão formoso amolece a

raposa, o corvo e a erva daninha


IX
Da Pérsia aos caminhos de La Mancha

é o sonho mais que drama e agonia que embebidos de

alegria os jarros e botijas evocam o paraíso encarnado

no grão da vinha / Adônis ou Jacinto / Vênus ou Minerva

louvo todo raro esteta : saber dosar num Ideal supremo

conhecimento e erótica euforia

Baudelaire, Wilde ou Proust, encharco-me de vinho ao

deleite da saudade de iluminado beijo que me guia tendo

ainda mesmo a distância como insistente e sóbria

companhia / faço da pena ebúrnea, pródiga messe em

estrofes inscritas em âmbar


X
Há um tempo da rama

outro sobra-me de pensar no ofício

semeio no instante de lavrar a senda

o tempo do estio é quando umedeço por dentro

a dor passa no espaço da colheita ao tonel robusto

sigo seco e resisto pressentindo o copo:

é o vinho um oásis que jamais olvido

aroma que escoa num ritmo de gosto aveludado


XI
Quem sabe também divino fosse o mundo

se composto de paisagens de mar e ondas de vinhedos

vicejando / rendilhados galhos por arenosa costa

provençal ou lusitana, as fontes jorrassem vinho e os

regatos trouxessem mais de perto os campos Oceano

adentro... argonautas sicilianos colhendo uvas entre

íngremes rochedos


XII
Não sei se paixão ou vinho / vate, bardo ou corsário

da minha Alma: componho feito quem crê no que mente:

sentir é demais para ser dito lucidamente,

a nobre sorte está na Arte ou trago lúdico / nunca

derradeiro, Verdade está no doce ou acre gosto que eu

mesmo faço concreto pelo que invento. Ao ponto e

termo: o vinho é meu poema que colho alteando o reino

de estrelas, tendo molde insaciável a mais frondosa das

videiras / devasso ou casto / amor em talhe rompante

o vinho na razão ou peito

sinestésico diz-me ao cerne:

o que em mim pensa: transborda e sinto

1 comentários:

  1. gostei muito ... li e reli com calma ... informação transversa a cada verso ... bom demais, Amoreira!

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