domingo, 3 de abril de 2016

"A Tragédia Latino-Americana" (Foto: Patrícia Cividanes)


Por Márcia Costa


“A violência faz parte de um vocabulário imposto e natural, desde o primeiro instante” (Rui Filho).


Três eventos culturais em cartaz em São Paulo ajudam a entender as tragédias que o Brasil e a América Latina enfrentam hoje. Uma história que no Brasil compreendemos muito bem a partir da lembrança da nossa violenta origem escravocrata, hoje ainda presente na forma como nos estruturamos econômica e socialmente. Eis um breve resumo da programação:

1- A exposição permanente Coleção Brasiliana – Espaço Olavo Setubal, no Itaú Cultural - conta a aventura do Brasil desde o descobrimento até o século XX. Uma riqueza de obras assinadas por artistas que registraram as originárias paisagens brasileiras, como Rugendas, Debret e Eckhout, culminando nas produções que marcaram a Antropofagia, a Bossa Nova e tantos outros marcos da cultura brasileira. Em destaque, os registros da violência contra os escravos e o enriquecimento da colônia ao custo da tortura e da morte de tantos negros.

2- A exposição "Antonio Benetazzo, permanências do sensível", no Centro Cultural São Paulo, que apresenta ao público a obra de um artista e militante político brutalmente assassinado pela ditadura brasileira. A mostra reúne obras de arte produzidas por ele e um documentário sobre sua trajetória. Desnecessário ressaltar que o que mais impressiona o público é a perda de um jovem artista e militante que dedicou a vida a libertar o País da opressão política.

3- A peça "A Tragédia Latino-Americana", em cartaz no Sesc Consolação, discute as heranças da colonização. Um elenco de peso, formado por atores brasileiros, argentinos e chilenos recorre à literatura para explicar o continente por meio de fragmentos, adaptações e trechos de obras de autores como Bolagno, Borges e tantos outros. Uma aula de história e uma obra de arte que abusa do seu potencial de gerar reflexão e crítica. Entre tantos pontos altos, a peça de Felipe Hirsch rende, satiricamente, homenagens aos grandes homens e feitos brasileiros ao longo da nossa história, até culminar nos dias de hoje, com elogios à performance do governador Geraldo Alckmin e sua polícia.

Depois de conferir os três eventos, cai muito bem a leitura do texto “Construções e Desconstruções”, que Rui Filho escreveu sobre “A Tragédia Latino-Americana”. Impressa no programa da peça, essa excelente reflexão ajuda a pensar o que somos hoje. Eis um trecho dessa proposta de tentar entender esse edifício antigo-moderno e em eterna reforma em que nos transformamos:

Construímos e desconstruímos a nós mesmos, os latino-americanos, incessantemente, em uma espécie de revisão inútil de atos e escolhas. Construímos independências e desconstruímos as liberdades em governos autoritários, que sucumbiram em democracias destruídas com ditadura, que, por sua vez, se foram com as democracias modernas, e que hoje... Bom, é sempre melhor esperar a história, quando se referir à América Latina. Nada em nós é tão linearmente simplificado. Nesse movimento ininterrupto, construção e desconstrução se confundem por ideologias, batalhas, conquistas, equívocos, equívocos e equívocos.

Enquanto discorre sobre as tragédias que enfrentemos - como o laboratório de consumo em que nos metemos -  ele lembra a força da Literatura, caminho para pensar os paradoxos de um continente:

Enquanto apenas parece nos mantemos um tanto alienados. Mas não todos. Se colecionássemos nossos pensamentos descobriríamos que muitos se voltaram a pensar, a falar e escrever sobre nós e quem somos e não. A literatura latino-americana, em sua dimensão  fantástica, criou espaços tangenciais aos domínios, em suas múltiplas faces, ao ser inventiva e surpreendente. Sempre.

Desde sempre, a arte desnudando e combatendo preconceitos, poderes, as violências todas, propondo outras formas de pensar a sociedade, pela tragédia, pela comédia, por tantos gêneros dramáticos... Felizmente, uma resistência difícil de se calar.


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