terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

Fotografia: Vivian Maier

Por Marina Ruivo


Fazia uns três ou quatro meses que eu tinha entrado na faculdade, estava com dezoito anos, mas nem um pouco feliz. Beto em Uberlândia, aprovado no curso de Direito de lá. Até então nos víamos com certa frequência, mas era Páscoa e ele escolheu não vir, falando de um jeito estranho ao telefone. Já estava combinado que não iríamos pra Santos desta vez, nosso encontro seria em São Paulo, na minha república, para termos mais privacidade, afinal família é sempre difícil.

Com a recusa dele – precisava estudar, se concentrar –, passavam na minha cabeça todas as coisas imagináveis, sobretudo, claro, as mais terríveis. Eu o via em meio a litros de garotas lindas, agraciado com shows e tudo o mais. Beto beijando loiras de atordoar, Beto deitando-se com negras e ruivas, Beto bêbado, Beto nem mais querendo que eu existisse, Beto se vingando de eu ter insistido em meu curso em São Paulo. 

Me esforçava para não fazer drama, acreditar nele, dar crédito. Mas não parava de chorar, fechada em casa. Só de pensar em mais um macarrão instantâneo me deu um nojo desgraçado, então peguei o carro e fui na praça de alimentação do mercado perto de casa. Não comi quase nada do bife com arroz feijão e fritas, mas me obriguei a ficar olhando as pessoas e me envolvi com uma família que se sentou em uma das mesas não pra comer, mas apenas para dividir um refrigerante de dois litros que deviam ter comprado mais barato no mercado.

O pai e a mãe eram gordos e tinham a cara cansada. O filho parecia um moço que persistia na adolescência, mesmo já não tendo mais idade pra isso, muito mais velho que eu. A mãe serviu os copos de plástico e encheu-os com o líquido laranja, que eles tomavam em silêncio. Depois de um tempo esperando uma conversa pra ouvir, desisti. Voltei à garagem e resolvi tomar um café numa doceira não muito longe, que tinha estacionamento e bombas de chocolate.

Foi pouco depois que vi. O amarelo do quindim acumulava-se no canto direito do lábio da moça que chorava baixinho mas sem descanso. De tempos em tempos dava um gole no café que já devia estar frio e, a intervalos ainda maiores, mordiscava o doce. O choro não parava. Ao entrar no café ela falava ao celular, mas já então estava chorando e logo desligou a conversa. Quando a garçonete veio colocar a toalhinha sobre o tampo de vidro da mesa, pareceu procurar se controlar e, por entre as lágrimas, abriu uma ameaça de sorriso. Era bonita. Não quis olhar o cardápio e ditou o pedido sem mais voltar os olhos à garçonete, como se tomada por um novo pudor das lágrimas. Mas isso foi só um instante, porque depois voltou a chorar sem se preocupar se alguém reparava.

Eu reparava e muito, tentando entender onde tinha errado, o que eu podia ter falado pra fazer Beto fugir. Não achava nada, e por isso não parava de repisar nossas conversas da última semana. Se tivesse bastante paciência, eu encontrava o que tinha feito de equivocado. Ou não? Queria acreditar que uma mudança tão brusca vinha de alguma doença psíquica muito severa. Dele, claro. Mas sabia que não era isso, ainda que pudesse parecer bastante. Ou era, eu já não sabia mais nada. O que eu precisava e preciso era parar de pensar. Em Beto, no que ele estava pensando, no que não pensava. Parar de tentar entender, racionalizar.

Por tudo isso, e por meus olhos já secos, a moça parecia ótima oportunidade, embora fosse estranho ficar na posição de alguém que observa outro alguém que chora. Continuei empurrando goela dentro o doce com o café, procurando olhá-la com mais discrição. Era delicada, a moça. A luz do sol empalidecia e era certo que ela logo iria embora, o quindim finalizado, a xícara vazia, as lágrimas que ainda escorriam, o guardanapo recolhendo a amarelidão no canto da boca.

Tinha os cabelos arruivados e o rosto sardento, os olhos pareciam esverdeados, mas estavam baços do choro contínuo. Era bonita, a moça. Os dedos da mão bastante longos, a pele leitosa revelando o azul das veias, um anel prateado no anular da mão direita. A esquerda afundada entre os cabelos, bagunçando-os e apertando o crânio. Quantos anos teria? Mais de trinta com certeza. Será que morava por perto? 

Talvez eu estivesse olhando por muito tempo, talvez tivesse perdido qualquer comedimento. Sei que de uma hora pra outra ela levantou os olhos da mesa e voltou-os bem na minha direção. Sorri com suavidade, em silêncio, até ser interrompida pela voz que queria saber de um táxi, Sabe, estou aflita, não vi passar nenhum e não conheço nada por aqui, preciso voltar e... Você é de onde? De Porto Alegre, a moça respondeu emendando uma fala confusa sobre táxis e hotel e marido e outras coisas que eu não entendia, porque falava e a todo tempo ameaçava irromper em soluços, pedindo desculpas por aquilo estar acontecendo e tentando justificar que ela não era assim, era só um momento, um troço qualquer passageiro que logo estaria superado, e ela precisava voltar, precisava mesmo voltar que Valdir devia estar esperando, e achei esquisito que o nome do marido fosse esse, nome que não se usa mais, mas também não tive certeza se o tal Valdir e o marido eram ou não a mesma pessoa, podia ser que não, o que a moça falava era dito mais para dentro do que pra alguém ouvir.

Eu sabia onde se podia conseguir um táxi. Este pedaço da cidade, desde aquela época, já era o meu pedaço. Mas era feriado e o ponto devia estar completamente vazio. Se ela caminhasse uns três quarteirões chegava na avenida, e lá em não muito tempo devia até conseguir um. Mas eu estava à toa, precisava me distrair e, acima de tudo, fazia pouquíssimo tempo que eu tinha um carro. Posso te levar, acho mais seguro. A moça hesitou, Por que mais seguro, só porque estou assim você acha que não consigo? As palavras saíram irritadas, eu tinha sido completamente inapta, afugentei-a. Ainda assim, na hora consegui ser firme e impedi que brotassem lágrimas em mim. (Foi só anos depois, revivendo a cena, que vi o ridículo da minha oferta, o ridículo que sempre sou.) Você me desculpa mas eu não posso, tenho mesmo que chegar logo, o Valdir...

Ela nem se deu conta que eu me senti mal. Disse isso e virou as costas, repetindo me desculpe, me desculpe, eu tenho mesmo que ir, ele deve estar sofrendo...

Os saltos de suas sandálias vermelhas batendo velozes no calçamento, a sombrinha da cor do arco-íris abrindo-se e deixando uma vareta escapar, torta. A garoa se insinuava e as lágrimas continuavam molhando seu rosto.

Não consegui nem saber como se chamava. Apenas fiquei me perguntando, mesmo sabendo a idiotice da pergunta, por que o tal Valdir é que estaria sofrendo, se era ela que chorava. Paguei minha conta e fui pro carro. Quem sabe se eu rodasse bastante, sem rumo e até mesmo com certa velocidade pelas ruas quase vazias, Beto entrava em contato. Ou, ao menos, saía da minha cabeça. E então eu me esquecia de mim, da moça, do quindim, de táxis, hotéis e até do Valdir.

O mundo é tão pesado quando se é jovem.

0 comentários:

Postar um comentário

Os comentários ao blog serão publicados desde que sejam assinados e não tenham conteúdo ofensivo.