domingo, 10 de janeiro de 2016

Foto: Lairton Carvalho


Por Fernando Magre


Lembro-me do impacto que tive ao ouvir pela primeira vez sua música Beba Coca Cola. Aquela sonoridade estranha me deixou completamente atônito e maravilhado. Quem é esse compositor? Fui pesquisar. Ouvi outras peças, comecei a ler seus livros, atormentei meus professores em busca de cds e partituras. Cada dia que passava, mais me interessava por aqueles sons que se tornavam cada vez menos estranhos. Através dele, conheci Augusto e Haroldo de Campos, Decio Pignatari, Ronaldo Azeredo, Grunewald, James Joyce, Ezra Pound, Mallarmé, Maiakovski, Tolstói, Godard, Antonioni, Mauricio Kagel, Dieter Schnebel, Jorge Peixinho. Ainda no meio da graduação decidi: vou estudar esse cara no mestrado. No meio do caminho apareceu uma pós-graduação em regência coral, uma ótima oportunidade de realizar um sonho: montar aquela peça que me arrebatou anos atrás. Lá vou eu me meter a reger seu Beba Coca Cola. Que delícia poder mergulhar no borbulhar sonoro que ele construiu sobre o poema de Décio Pignatari. Que emoção poder manipular essa música pulsante e senti-la vibrante nas vozes dos cantores.

Passada essa fase, entrei no mestrado e, como prometido a mim mesmo, passei a estudar “aquele cara”. Inicialmente minha vontade era pesquisar suas peças corais, obras de fundamental importância para a música coral brasileira e internacional. Essas peças me causavam uma estranha euforia, me sentia diante de uma mina de ouro. De fato estava. Mas os caminhos e descaminhos na obra dele me levaram para outro lugar. Questionava-me: por que diabos quase todas suas músicas têm alguma intervenção cênica? De onde ele tirou isso? Por que algumas peças são apenas indicações textuais? Por que algumas peças não têm sequer sons, apenas cenas? Que raio é isso que não é ópera, não é musical, não é happening, não é performance, mas que pode conter elementos de todos eles? Essas questões começaram a tomar conta de mim. Foi então que decidi me lançar a uma tarefa audaciosa: desbravar sua obra de Música Teatro. Tarefa árdua, porque ele é, definitivamente, indefinível. Quando fui visitá-lo pela primeira vez, falei que estava iniciando minha pesquisa sobre sua obra de Música Teatro e que queria fazer algumas perguntas. Após alguns minutos de apresentações, histórias de sua vida que mais pareciam fábulas e algumas piadas, eis que ele mesmo inicia a entrevista: “Vamos lá, primeira pergunta: o que é Teatro-musical? Pois eu também não sei o que é”. Ele não poderia ter dado resposta melhor. Esse primeiro contato ficou oficialmente decretado como “o melhor dia da minha vida”. Reitero: foi realmente o melhor dos meus dias. Ainda ali, ele sugeriu que nós e a professora Silvia Berg compuséssemos, juntos, uma peça. Imaginem! A ideia era uma sessão espírita em que seriam evocados grandes compositores (pensamos em desvendar o misterioso caso [causo?] entre Clara Schumann e Brahms). Uma peça que não foi concretizada, que só existiu naquele momento, que só foi ouvida e sentida por nós. Para arrematar, ainda fomos tomar um chope (e o meu coração não cabendo no peito). Nas ruas, tive a chance de andar de braços dados com ele, auxiliando-o na caminhada. Ele havia fraturado o fêmur recentemente, e por isso estava acompanhado de uma bengala. Na verdade, ele não precisava da minha ajuda, o fiz apenas para ficar mais próximo dele. E ele gentilmente aceitava, me contando histórias de Santos, de suas peças corais, me perguntando por que eu queria estudar música teatro, se eu era compositor. Quanta generosidade! 
Graças a ele, fiz minha primeira viagem internacional: fui para Ohio apresentar uma análise de seu O Último Tango em Vila Parisi. Ao apresentar o trabalho e colocar a peça para as pessoas assistirem, percebi em algumas delas o mesmo arrebatamento que tive quando ouvi pela primeira vez uma peça dele. Entendi que ele tem um jeito especial de atingir as pessoas. Um jeito muito doce, muito sincero. 

Quem é ele? Não sei dizer... Talvez um anjo esquerdo com a missão de bagunçar a música brasileira; talvez um inventor que fez da música o cinema do som; talvez um Odisseu transmoderno que ancorou nos mares do sul. 
Certa vez, ele disse que compõe para merecer ouvir os grandes mestres. Ah, Gilberto, você nem sabe, mas nesse panteão você figura com luz inigualável. Eu espero merecer ouvi-lo. Obrigado por, mesmo sem saber, ter feito tanto por mim. No meu peito você permanecerá brilhando assim como o slogan do sol: pra sempre e com brilho eterno.

Fernando Magre é músico e pesquisador

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