terça-feira, 12 de janeiro de 2016

Sem título - Lairton Carvalho

Por Márcio Barreto



Eliane encosta a cabeça no ombro de Gilberto Mendes e canta:

O mundo é um sonho tênue
– suave como o gesto de suas mãos que encantam os olhos do compositor absorto nos labirintos de suas lembranças-teias
que teimam em capturar o fulgor de seu lento naufrágio
rumo ao esquecimento

Ao seu lado
Messiaen nada entre ondas martenot e reza pelo fim dos tempos
Máquinas schafferianas escorrem óleo sobre os ouvidos atentos de Stockhausen que escuta tudo como se fosse a primeira vez

Eliane levanta-se e olha a janela enquanto Mendes desliga a tv

Todos somem, tudo é silêncio



As pupilas do compositor


Gilberto Mendes olha para Flávio Viegas Amoreira
e diz que tudo o que seria
já se formara antes dos seus 16 anos de idade.

Ele ri e lembra-se de tudo o que viveu
cada filme,
música,
encontro,
viagem,
diálogo
como se cada segundo de sua vida
pudesse ser relembrado em detalhes

Amoreira,
com seus pequenos olhos negros de fazer doer,
converte-se em uma miraculosa máquina de chuva que instantaneamente o leva para Nova York em 1929.

Em Santos,
as folhas dos chapéus de sol caem agitadas pelo vento repentino.

O mar agita-se
e os transatlânticos aguardam o momento para aportar.

Em breve, o porto será mais uma lembrança.

Mendes bebe um pouco mais de seu chá.
Ulisses olha pela janela,
enquanto o anjo Ariel esquiva-se de balas perdidas.

Mendes fecha os olhos
e as ruas de Darmstadt estão sob seus passos misturados com o chão frio da agência bancária onde conta o dinheiro que escorre
e muda de mãos dia a dia.

Amoreira arruma a gola do casaco cinza e lembra do que não viveu


O mar chama

Mendes não toca mais o piano,
sua música é uma criação intelectual vinda de um sem número de referências cruzadas,
um imenso quebra-cabeça móvel
Ulisses continua ao seu lado,
fiel ao sonho de surfar a onda perfeita
Dorothy Lamour lamenta-se sentada nas areias escaldantes de Copacabana.

Tudo já foi dito

O mundo gira.

Sem saber como e nem por que
Marcelo Ariel despenca sobre a mesa
onde os tupinambás saboreiam seu delicioso mingau.
Silencioso como o número exato de todas suas palavras
escritas no branco frio do papel,
levanta-se e livra-se das sobras


Flávio conversa com o coelho da cartola de Gilberto Mendes que, distraído com a conversa de Jack Fortner,
 não percebe o fim do mundo.

Tudo gira nas voltas da porta bandeira
que atravessa o solo árido da Casa das Rosas
enquanto os abaporus sorvem seus cafés expressos
e fragmentam-se em diálogos desconexos.

Viegas conversa com Deleuze
perdido em labirintos construídos aleatoriamente pela não-vontade,
o não-objeto,
o vão desejo da eternidade.


Em Santo André da Borda do Campo João Ramalho
escapa de uma flecha envenenada pelo padre Manoel da Nóbrega que em poucas palavras acusa-o de viver como um animal, escravizando indígenas,
matando-os e servindo-se deles para seus prazeres
e ganâncias sem fim.

Neres encontra-se no epicentro de uma história esquecida
E o mar silencioso de suas palavras
inunda gradativamente o espaço da sala repleta de desenhos,
sonhos e lembranças.

A imagem reina:
o mundo através dos olhos,
o barro,
 a macumbaria poética de suas ancestralidades.

Os tupinambás dançam e bebem cauim,
logo a ibirapema balançará no ar atingindo a nuca do inimigo,
todos celebrarão e a carne do inimigo será repartida.

Através dos óculos Neres esquece-se do que viveu,
o mundo é apenas uma sombra refletida na folha de papel sob seus dedos.

Sonho contínuo


às dezoito horas e quarenta minutos
Gilberto Mendes acorda de um sonho inesperado e levanta-se de sua cadeira:

uma galáxia desavisada choca-se com outra
Mario de Andrade imagina tupis tocando alaúdes
Célia Faustino rega suas plantas com o silêncio de Nietszche
Montemurro encontra a orelha de Van Gogh
um cão indeciso retarda o passo da dona
Oswald de Andrade consome-se em dúvidas
Villa-Lobos acende seu segundo charuto em frente ao piano
Antonio Eduardo passeia na Bélgica
E Cientistas descobrem a partícula de Deus

- ao fundo
no céu azul
milhões de estrelas escondem-se na luz estonteante do meio-dia
enquanto Jack Fortner acorda na Concha Acústica
sonhando com Gilberto Mendes levantando-se de sua cadeira
às dezoito horas e quarenta minutos

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