quinta-feira, 7 de janeiro de 2016

 Foto de Gregorio Gaganian 


Por Eugênio Martins Júnior 

Meu primeiro contato com a arte de Gilberto Mendes foi no 33° Festival Música Nova, em Santos. Até então, só havia ouvido falar ou lera sobre o maestro, seu festival e aquela música esquisita em um jornal local.

Até ouvir a reprodução de Ulysses em Copacabana Surfando com James Joyce e Dorothy Lamour pelo coletivo belga Het Spectra Ensemble, pra mim, música atonal era Sex Pistols.

Aquela noite de domingo, 17 de agosto de 1997, mudou minha vida. Cursando o segundo ano do curso de Comunicação Social em Santos, me senti na obrigação de sair de casa debaixo de chuva para tentar aprender o que era a tal da “Neue Musik”, que já não era tão nova assim.

Nunca tive curiosidade para outras coisas que não música e literatura. Aprendo tudo o que posso com os recursos que tenho a mão. E foi naquela noite memorável que percebi que estava perdendo um tempo precioso.

Não que a música dita popular que curtia na época e curto até hoje seja ruim, nada disso. O que percebi, foi que havia perdido muito tempo justamente por não ter curtido a maravilhosa música erudita executada pelo Het Spectra Ensemble e, por extensão, todos os outros artistas que haviam estado naquele festival gratuito e que acontecia há muitos anos na minha cidade.

Porra, como isso pode acontecer? Como um cara como eu, malaco em tudo o que acontecia no mundo da música, não sabia o que se passava todos os anos, volto a repetir, na minha própria cidade? Ainda mais em um país onde tudo o que é relativo a cultura não passava da quinta edição, o Música Nova já havia completado mais de trinta invernos!

Vi o maestro pessoalmente pela primeira vez naquela noite. Ainda sob o impacto do concerto do Spectra, fui chegando perto da roda de conversa em que se encontrava Gilberto e fiquei por ali. Na primeira oportunidade dei o bote. Não lembro qual foi o teor da conversa, mas nem me importa, devo ter falado alguma merda. Queria mesmo era conhecer o tiozinho responsável por aquilo tudo e sair dali com uma entrevista agendada. A impressão que ficou foi das melhores. Ele tratou muito bem o aluno de comunicação desconhecido, como depois fui descobrir, tratava todas as pessoas.

Gilberto era de um cavalheirismo impar. Mesmo quando partia para a crítica contra os políticos santistas da época, mantinha a linha. Sempre no campo das ideias.

E não foram poucas as críticas, na mesma proporção em que o festival aparecia na mídia nacional e internacional por suas qualidades, aparecia também pelas suas incertezas. Se já era difícil ao artista Gilberto ter de lidar com as encrencas da produção, tornara-se insuportável ter de passar o chapéu entre as empresas e lidar com as mentiras do poder público.

Passei a escutar a música erudita e eletro acústica com atenção, por influencia do Música Nova e de traz pra frente. John Cage, Guerra Peixe, Claudio Santoro, Karlheinz Stockhausen, Pierre Boulez e Edgar Varese (os dois últimos também por influencia de Frank Zappa), passaram a freqüentar a minha vitrola.  

Com o tempo outros encontros com Gilberto aconteceram. Certa vez tive uma ideia louca. Apareci do nada em seu apartamento com um monte de discos embaixo do braço para ele ouvir e comentar. E ele topou na hora! Ouvimos Buddy Guy, Billie Holiday, Frank Zappa, João Gilberto, Beatles, Fernanda Porto, Lenine, Wynton Marsalis, Paco de Lucia, Van Morrison, Paulinho da Viola e outros. Depois bebemos café preparado pro sua esposa Eliane, sempre presente. Ainda convenci um editor a publicar isso.

Em 2008, a pedido de José Luiz Tahan, da Realejo Livros e edições, comecei uma série de entrevistas com Gilberto. A ideia era reunir informação suficiente para editar um livro sobre suas experiências, não só na música, mas também em outras duas paixões, o cinema e a literatura.

Mesmo conhecendo a generosidade de Gilberto, mais uma vez o velho maestro me surpreendeu. Em sua casa há algumas prateleiras com mais de 20 pastas reunindo todos os seus artigos escritos para diversos veículos de comunicação desde os anos 60, uma verdadeira coletânea sobre seus pensamentos. Sem titubear, Gilberto disse que eu poderia levar todas elas pra minha casa e selecionar o que achava relevante. Uhauuu! Todo seu arquivo pessoal a minha disposição. Obvio, fiz a limpa. Levei tudo pra casa, abri uma por uma e copiei os artigos que me interessavam sobre música erudita, popular, bossa nova, cinema, Santos.

Lá pela terceira entrevista levei um banho de água fria do mar, o maestro me contou que ele próprio estava escrevendo suas experiências (o que ficou comprovado com o lançamento do livro Viver Sua Música – Com Stravinsky em meus Ouvidos, Rumo a Avenida Nevskiy, editado pela Edusp em parceria com quem? Claro, Realejo Livros, que não perde o tempo nem a viagem).

O que eu poderia contar sobre Gilberto Mendes que ele próprio não contaria cem vezes melhor? Se é que há consolo, fiquei com todos os artigos guardados que havia copiado meses antes e, sempre que posso, viajo pelo seu mundo.
Passei a respeitá-lo mais quando soube que havia sido militante do Partido Comunista Brasileiro. Em uma época em que não se escondia o rosto atrás de mascaras e atrás de perfis falsos na internet, não foi pouca coisa.

Nasceu e morreu em Santos, e entre os dois atos, viveu e exaltou as particularidades e as belezas da cidade.
Denunciou suas feiúras. Entre elas, a política cultural do município. Quando certo prefeito extinguiu a Secretaria de Cultura do Município, foi uma das vozes que se levantou contra.

Certa vez um funcionário da prefeitura sabendo que havia estado recentemente com Gilberto me perguntou se “ele havia batido muito na prefeitura”. A minha resposta foi: “Muito”.

Talvez por isso, seu evento tenha sido preterido ao dos outros. Talvez por isso, ninguém na esfera política santista tenha dado muita bola a sua música atonal e seu pensamento atonal.

Talvez por isso, as verbas tenham ido aos afagadores do poder. Talvez por isso, o Música Nova não ter sido conhecido e freqüentado pelos santistas.
Por tudo isso, perdemos o festival para Ribeirão Preto.  

Porra, como isso pode acontecer? Como um cara como eu, malaco em tudo o que acontecia no mundo da música, não sabia o que se passava todos os anos, volto a repetir, na minha própria cidade?   


Eugênio é jornalista e produtor cultural



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