Por Germano Quaresma/Manoel Herzog
A morte prematura de um artista é horror. Um
imortal faz passagem, não morre. Gilberto Mendes concluiu sua obra e
transcendeu. Sorte de quem alcançou conhecer sua simpatia e generosidade. Não
convivi com ele, tivemos um contato breve de poucas palavras e veneração de
minha parte. Vários dos meus amigos artistas de Santos lhe foram íntimos, a
existência não deu a mim este presente. Mas pude assistir como que sua
despedida, que relato no texto abaixo, escrito à época em que o vi ser
homenageado por duas bailarinas, sentado em regozijo feito um velho deus.
Nas minhas pesquisas literárias
sempre cultivei o soneto enquanto forma perfeita. Mas, que é a forma, senão a
servidão?
Roland Barthes preconizava que a
língua é fascista, a língua é fascista, obriga a dizer e nos seus limites de
língua. A forma é fascista outro tanto, não me parece que os poetas do verso
livre se tenham podido libertar do jugo da língua, todos somos obrigados a
escrever num conjunto de 22 letras e meia dúzia de sinais, a língua é fascista.
Logo, a forma não pode aprisionar mais que a literatura em si. Mas a forma,
diante da poesia verdadeira, diante da epifania, do alumbramento, é por vezes
insuficiente. Constatei isto num primeiro soneto, de há mais de vinte anos, este
aqui:
Quero te ver no céu, longe de tudo
Longe de tudo te encontrar, no céu
Além do Bem, do Mal, do Absoluto,
Longe de tudo que pensas ser meu
E que, no entanto, eu nunca possuí.
Mas, tu não vês minha insuficiência
Mas tu não vês que eu quero só a ti
E daí vem toda a minha ciência.
É que eu sonhei que tu eras a mais
linda
Do Céu, tu não amamentavas nem
Eu trabalhava ou morava num gueto.
Não dá pra te contar o sonho, e ainda
Que um dia o possa, pra exprimir não tem
Suficiência a forma de um soneto.
Pois bem, muito obrigado, é mesmo um
belo sonetinho, mas o tema da insuficiência da forma me alvejou de maneira tão
absurda neste final de semana que preciso compartilhar a experiência aqui.
Compareci à Festa do Livro, em Santos, na Estação da Cidadania onde, para
homenagear o fabuloso maestro Gilberto Mendes puseram-se a dançar duas
ninfas, Tatiana Justel e Adriana Barbieri. A visão
daquela dança, a leveza dos movimentos em volta do velho deus do mar, duas
sereias dançando pra um Netuno, e os olhos de mar da baialrina Adriana me
sequestraram de forma tão absoluta que, ao esboçar um soneto, não me couberam
as palavras nos 14 versos convencionais. Extrapolei o tamanho, e meu soneto, que
nem assim disse tudo, saiu com dezesseis versos, como um vulto que extrapolasse
a moldura do quadro:
E nao bastasse a leveza
Dos movimentos de naia
Como dançasse uma arraia
Doce, incensando beleza
Em volta de um mestre. Aia,
De um rei do mar, singeleza
De melodias, que tesa
Na platéia a luz espraia.
Se não bastasse essa estampa
Se não bastasse o perfume
Se eu, mariposa na lâmpada
Não me atraísse do lume.
Bem navegava entre abrolhos
Invadia, inoportuno
O mar do velho Netuno.
Mas precisava estes olhos?
Germano Quaresma é o pseudônimo de Manoel Herzog, escritor e poeta
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