quinta-feira, 7 de janeiro de 2016

Foto de Gregorio Gananian

Por Teresinha Prada

No dia 1º de janeiro de 2016 a cultura musical brasileira perdeu um de seus mais efetivos agitadores: Gilberto Mendes. Ele viveu seus 93 anos realizando inúmeros eventos artísticos, materializando incontáveis produtos culturais, colaborando para novas carreiras e criando obras icônicas que entraram para o acervo mundial da música erudita. Entretanto, é de agora em diante que seu nome e sua produção começam um novo tempo; no forçado distanciamento é que analistas, estudantes, públicos, compositores e intérpretes caminharão por sua poética e nos informarão das tantas facetas desse artista vivaz.

Desde o período em que convivi mais com esse criativo compositor, muitas de suas considerações calaram fundo de imediato em mim, outras foram surtindo efeito no acerto do tempo, e o saldo dessa relação mentor e discípulo permanecerá, tamanha foi a sua força em minha formação e atuação – bem sei que isso aconteceu para muitos de meus colegas. Selecionei algumas memórias, expressões mais acentuadas que recordo das muitas vezes em que a sorte me propiciou contato com Gilberto Mendes e que agora sublinho aqui.

Paixão – O amor pelas Artes surgiu muito cedo em sua vida e a música em especial; vivia-se a era do rádio como grande mídia, a incitar sua imaginação com as vozes e melodias que ouvia; o cinema gerava astros; o mistério do rádio e o encantamento do cinema criaram uma incomensurável paixão em Gilberto; ele podia citar de cabeça inúmeros roteiros de filmes e programas de rádio e a música permeando sempre essa memória viva, que surpreendia a todos pela riqueza de detalhes e constantemente com uma história ligada à época. Cada disco, cada partitura, ele sabia a origem, o quando e porquê daquilo; tudo era valorizado, dimensionado por sua fala, suas histórias contadas com grande paixão pela Arte, pela vida. Gilberto irradiava essa paixão a todos ao seu redor, instigando a cada um que também vivesse sua própria história com tal força e paixão.

Loucura – Gilberto Mendes promoveu a ruptura com o passado para propiciar o novo, o experimentalismo, o objeto sonoro e a essência da Arte, a não linearidade; tudo isso foi a força necessária para romper com regras e esse não enquadramento gerou polêmica, escandalizou o público ainda “burguês”, tirando-o da zona de conforto, e tudo o que a essa música nova se ligasse foi tachado de irreverência no mínimo, loucura no máximo, uma música de excêntricos. No entanto, unindo-se à paixão, a loucura esteve presente sim, mas enquanto subversão da ordem, do que era esperado, do que estava controlado, tirando as antigas certezas de campo.

Técnica: a base musical de Gilberto Mendes foi obtida com grandes nomes do cenário brasileiro da época – Caldeira Filho, Savino de Benedictis e a grande pianista Antonieta Rudge; o autodidatismo de Gilberto na composição, o exame apurado de grandes partituras e o encontro de seu próprio caminho como criador foi um trajeto construído sempre ao lado da vanguarda e ao largo da tradição nacionalista, com raríssimas exceções. Essa formação resultou numa extrema liberdade para entrar e sair de qualquer “fase” em sua produção, a ponto de misturar tantas vertentes com muita naturalidade. Talvez por ter navegado em mares inventados por si mesmo, ele fluía de uma parte a outra com suavidade.

Talento: suas obras mais experimentais fortaleceram a disseminação da música nova no Brasil, principalmente o uso do grafismo, em que se revelam os critérios, a geração e o desenvolvimento dessas obras, fortemente estabelecidos por sua produção independente da Europa; mais tarde vemos em descrições de suas músicas todo seu talento tanto para harmonizar quanto para serializar uma obra,  desconstruir e fundir o jogo de timbres e contrastes; a ressonância e a reiteração de temas de seu interesse fincaram um estilo que já logo reconhecemos como seu – como acontece à maneira dos grandes, o enlevo sonoro de Gilberto Mendes é reconhecível.

Cultura: a paixão pelas Artes, o seu diálogo permanente com todas as áreas artísticas e o interesse pelo Novo em todos os cantos do mundo, fizeram com que Gilberto fosse reconhecido como cosmopolita, atualizado, em voga –­ daí que estar com ele era se sentir parte disso tudo, um passaporte para o futuro. Além do que, sua leitura das artes, história, geografia, política, do popular, culto e massivo causavam uma certeza da aproximação de todas as áreas do conhecimento, de um continuum, e de um enorme discernimento capaz de explicar e clarear tantas questões, a partir  de suas próprias experiências. O mais emocionante era testemunhar sua cultura em relação ao Brasil – “Um país que tem índios! Que maravilha!”, ele dizia.

Erudição: o foco de Gilberto era na “alta cultura”, sem medo de elitismos, e via-se nisso a importância que dava para as estreias de obras musicais – um dos maiores ensinamentos que assimilei dele foi a importância da constante produção de novos projetos e a consequente apresentação, sem visar o retorno imediatista ou de grande porte, mas sempre estar em cena. E foi defendendo essa alta cultura, que o vi diversas vezes pronunciar a sua opinião sobre a situação da música erudita, de estarmos “no gueto”, no ponto mais ínfimo do conhecimento e do alcance dos brasileiros, inclusive pela atual elite, que não se interessava mais por ela. Nem por isso, a erudição precisava ser preterida e a cada oportunidade oferecida, Gilberto expressava toda a sua vasta experiência erudita, com fôlego de quem falava disso pela primeira vez.

Expectativa: sua enorme generosidade e crença nos jovens eram um incentivo a mais para seguirmos em frente; até os receios e bloqueios ele sabia curar; do alto de seus muitos anos de vivência na área, sempre podia ver o lado positivo, o estímulo para resistir e perseverar. E assim foi que Gilberto encaminhou muita gente no meio musical, fosse pela chance dada em atuar no Festival Música Nova, fosse pela simples atenção em ouvir e aconselhar tantos jovens e até profissionais. No meio artístico em geral, de dança, teatro, letras, ensino, Gilberto transitou com extrema desenvoltura, pois sabia do que estava falando, e possuía as melhores expectativas para com os iniciantes, desde alternativos a verdadeiros outsiders de quem nunca duvidou.

Assim é que para manter essa pureza de coração, para viver sua música, caminhando pelas avenidas com Gilberto Mendes em nossos ouvidos, é que estamos agora aptos para refletir e reverberar seu trabalho em novas produções, em novos projetos, como o mestre nos ensinou. Agora é que as suas sábias palavras e ações serão cada vez mais difundidas. Gilberto é agora.


Bacharel em Violão pela Universidade Estadual Paulista – UNESP; Mestre em Comunicação e Cultura pelo Programa de Pós-Graduação em Integração da América Latina – PROLAM e Doutora em História Cultural, ambos pela Universidade de São Paulo – USP; Professora Associada da graduação em Música e do Programa de Pós-graduação em Estudos de Cultura Contemporânea da Universidade Federal de Mato Grosso – UFMT. É autora do livro Gilberto Mendes: vanguarda e utopia nos mares do sul (2010, Editora Terceira Margem).





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