quinta-feira, 7 de janeiro de 2016

Foto-montagem Marcelo Ariel

Por Heloísa de A. Duarte Valente 

Desde quando conheço Gilberto Mendes? Uma pergunta difícil de responder. Isso porque, a bem da verdade, Gilberto Mendes é um signo múltiplo, portador de uma plêiade de significantes. E, todos eles estão, de algum modo, atados a minha história de vida. Então, para falar de Gilberto Mendes preciso revisar meu percurso intelectual.

Lembro-me de Gilberto Mendes como uma presença quase mensal, na minha pré-adolescência: costumava frequentar os concertos do Centro de Expansão Cultural e lá o via: atento, circunspecto, responsável por escrever matéria crítica para a coluna do jornal. Eu não passava de uma iniciante nos estudos de piano e sabia da notoriedade do compositor, ao qual não ousava me aproximar, por me julgar insignificante para lhe dirigir a palavra. Acreditava que os sábios aliavam a notoriedade intelectual à soberba. Anos mais tarde, verificaria que, no caso de Gilberto, era uma inverdade. Havia, de fato, os que reconheciam a sua competência, não obstante compor músicas malucas... Claro, o mundo que eu frequentava não poderia fazer outro julgamento...

Adolescente, passei a frequentar os concertos do Madrigal Ars Viva e o Festival Música Nova - talvez o único ato de rebeldia que pude praticar, na juventude. Afinal, não curtia Os embalos de sábado à noite, Discoteca, os sambões-joia do Benito de Paula e, tampouco, as baladinhas da Diana Ross ou dos Stylistics. Gilberto era presença constante, sempre acompanhado pela Eliane. Muitos foram os concertos memoráveis e não raro em locais como o Caveau, da Aliança Francesa. Foi no Caveau que sofri o impacto do Blirium C9, por Caio Pagano; o programa com peças da renascença espanhola, pelo o Ars Viva... Nesse dia, estava Nélia Silva, em sua presença magnetizante... 

Ingresso no Departamento de Música da Escola de Comunicações e Artes da USP em 1978. Passados dois anos, revejo Gilberto, como meu professor de técnica dodecafônica. É quando me é dado a conhecer outro Gilberto: o professor. Sistemático, crítico, consciencioso. Num habitat em que a intelligentsia do Departamento orientava a comunidade a exaltar os grandes vultos da Escola de Viena, Gilberto reconhecia soluções estéticas interessantes encontradas pelos banidos, devido à sua opção política considerada reacionária. Por essa época, tomei coragem de pedir autorização para participar do Madrigal Ars Viva, como coralista. Encontrava-me, assim, com o Gilberto professor às quintas-feiras e, aos sábados, com Diretor Artístico da Sociedade Artística, na hora do cafezinho.

Avalio o quanto esse ambiente do Ars Viva foi importante para o meu ingresso no mestrado em Comunicação e Semiótica, na PUC-SP: Fez crescer meu interesse no estudo da voz cantada, ao mesmo tempo em que deu um direcionamento àquilo que veio se desenhar como o tema da minha dissertação: o papel do ruído e silêncio na ampliação das fronteiras culturais e estéticas. Para estudo de caso, selecionei obras experimentais vocais de Gilberto Mendes (Opera aberta, nascemorre, Motete em Ré menor, Asmathtour, Opera aberta, dentre outras). O contato mais próximo com o compositor, que me franqueou suas partituras, foi fundamental. E, sobre esta aproximação, permito-me relatar algo de anedótico. Ainda cursando disciplinas do mestrado, tive a ideia de procurar Gilberto Mendes, o compositor, para saber como ele entendia estética barroca, em sua obra. Fui ter com ele em seu apartamento. Ao comentar sobre o que estava estudando, lá por uma certa monta, ele me pergunta, de chofre: "Vem cá, esse negócio de semiótica não é aquilo que estuda os sinais de trânsito?" Sabendo que ele foi o introdutor da semiótica musical aos meus professores da PUC - inclusive para a notável Lúcia Santaella- fiquei perplexa. Tempos depois, ao relatar o fato ao amigo Gil Nuno Vaz, entre muitas risadas, fiquei sabendo que ele "estava tirando uma onda" de mim! Então, mais um Gilberto entra na minha lista: o piadista, que gosta de brincar com os amigos.

Vivi entre 1994 e meados de 1995 em Paris, bastante solitária. Escrevia minha dissertação de mestrado. Ao chegar o outono, o cinza interminável da bela e elegante Paris me fez sentir falta da desordenada e provinciana Santos. Sonhava com a linha do horizonte, visto da orla, a movimentação das vagas, o sal marinho. Então ao ler Uma odisseia musical, percebi o quanto Gilberto Mendes, tornou-se santista; descrevia como e porque "foi ficando" na cidade; aliás, Santos é “várias cidades numa só, na sua cabeça, como sua música”, conforme as últimas palavras da obra. Percebi-me como uma caiçara urbana, ousando admitir que Paris fosse insignificante em comparação a Nice, porque a Baía dos Anjos sabe ao sal marinho e ao Mediterrâneo. Agradeço a Gilberto Mendes por me fazer perceber, no devido tempo, que Música “era a minha praia” e Santos a “praia da minha música”.

A partir de 1995, passamos a nos encontrar mais regularmente. As reuniões Schülappen (grupo informal de santistas que se reuniam na sua residência e de Gil Nuno Vaz e do qual Gilberto era o Presidente) foram aos poucos rendendo mestres, doutores.... Gilberto Mendes estava entre os membros da banca de quase todos, inclusive a minha.

Tenho a honra de ter escrito uma breve biografia, a convite do próprio Gilberto. Tendo lido minha dissertação e tese, julgou que eu escrevia “com propriedade e elegância”. Esse privilégio, que muito me honra, deveria ser um apanhado de breves notas biográficas sobre o compositor. Mas o andamento do trabalho acabou resultando em um esboço de romance. Gilberto queria que fosse contada a história da sua família, algo totalmente inédito... Eis que fico conhecendo uma extensa saga, envolvendo desde a sua arrojada avó Belarmina, seu affair com um violeiro galante, que ela “despacha” depois; os dramas de sua mãe, Dª Anna, ante a viuvez precoce; o tio nazista que, após um colapso nervoso, resultado de paixão amorosa não correspondida vem morar com a família comunista, em Santos... 

Não vou me deter acerca do Gilberto Mendes, o organizador do Festival Música Nova. Este é um dos aspectos mais conhecidos. Dedicou muitos anos na organização do evento, em praticamente toda a sua íntegra. Nos últimos tempos, atuou como diretor artístico. Paralelamente, passou a dedicar-se à militância política, como líder intelectual nos fóruns voltados às políticas culturais da cidade de Santos e para além dela. Tornou-se líder natural e símbolo de resistência cultural.

Haveria outros Gilbertos a acrescentar à lista: o cineasta, que gostaria de ter sido. Mesmo não tendo sido, levou o entusiasmo aos filhos. Estava para iniciar a experiência como ator, mas o destino não quis esperar por isso. Gilberto também falava muito sobre literatura e acabou desenvolvendo a sua verve de romancista: ao completar 90 anos, publica Danielle em surdina, langsam. Deixa uma obra inédita concluída.

Gilberto Mendes, tantos homens num só, como sua música, como sua cidade... Uma pessoa extremamente afável, sempre pronta a dialogar, entusiasticamente, com qualquer interessado em música, arte, ou Santos... Soube levar a vida com extrema simplicidade. Recusou a pompa, o solene, o monumental, o oficial, o hierárquico... Aceitou entrar na Academia Brasileira de Música, mas somente como membro honorário. De outra parte, orgulhava-se de ter recebido a Ordem do Mérito Cultural, pois a comenda lhe foi concedida pelo Presidente Lula, a quem admirava.

Se não aprendi todas as lições com o sempre mestre Gilberto Mendes, creio ao menos ter assimilado uma: a ousadia é um esforço inevitável, não obstante o alto custo de suas contrapartidas. Esse é preço que se paga quando se transita pelo Novo. E, se não aprendi o ofício de compositora, pude desenvolver algumas habilidades que sequer imaginava possuir e que acabei descobrindo, em grande medida, através do incentivo e provocações de Gilberto Mendes! Na última vez em que pude encontrar com ele, no dia 30 de dezembro, mostrei-lhe o projeto de um texto que preparo sobre a cultura tiki pop, a música polinésia e as composições dele. Ele me disse, sorrindo: “Parabéns! Onde vai ser isso?”. “Em Havana, em março”, respondi. Ele retruca: “Mas vão deixar você falar disso lá?” Confirmo: “Sim! Sou uma das organizadoras do simpósio”. Ele sorri, novamente...

Este homem de caminhar “lépido e saltitante como numa tarde de primavera”, como designaria Rousseau (sobre o andante) não envelheceu, a despeito de seus cabelos brancos e algumas rugas. Gilberto Mendes não morreu. E assim permanecerá na minha memória; na memória de todos: lúcido, espirituoso e provocador, mestre inconfundível. 

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