quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

Príncipe Negro, Nice Ventura 

Por Márilia Fernandes

Pense num presente impossível de empacotar. Essa foi minha escolha pra te presentear. Quero te dar algo intangível nesse Natal. A sua própria memória. E cada pedaço dela foi contado ao pé do ouvido, é tudo verdade, tudo memória escavada da terra mais funda aonde consegui chegar. Dependendo de quem as lê, essas recordações se apresentarão como história vivida na carne. Para outros, rememórias de causos já ouvidos. Alguns poderão até nomear um arquivo que estava sem nome e chamá-lo de “minha própria história”, “origem”, “gênese”. 

Fim do século XIX. Vale do Cotinguiba, Sergipe. Tomemos a imagem do lusco-fusco – transição entre dia e noite, noite e dia, o crepúsculo. Anoitece o tempo de cativeiro do negro e amanhece a corrida pra fuga aos mocambos dos quilombos. O Vale mantinha em segredo essas malocas. O canavial escondia as caras pretas que metiam medo na região mais próspera do açúcar no Estado. Lusco-fusco, fusco, carafusco, cafuzo, aquele que se tornou escuro. Essa era a cara dos parentes da tua mãe mais velha que habita o barro mais fundo do teu quintal. Cafuzo, carafusco, cafuz. Índios e negros. 

Tua mãe mais velha, os cabelos sempre arrumados numa trança comprida. Aquela saia de babados com renda. Sentava-se no terreiro da casa dos netos quando os ia visitar. Um dia sua neta-menina a recebeu para uma visita de conversa no terreiro mas ninguém mais a viu. A mesma saia de babados e trança. Eram 7? 9? Quantas casas formavam a força de trabalho do Engenho do Cafuz? Bem feitinhas as casinhas. Dum lado, mais distante, a casa do contador. Mais uma carreira, a casa dos patrões. Do outro lado, nos limites da propriedade casas mais rústicas, parede de lama e bambu. Casa dela tinha parede de tijolo. 7 ou 9 casinhas? Já não se pode contar mais. 

O pai dela cuidava das plantações de fruta que ia pra mesa da casa-grande, assim, também não faltara fruta sobre a mesa da menina. Pai dela nunca soube quem haviam sido seus pais, que caras tinham. Essa era sua maior tristeza. Em sua memória mais antiga já se achava no engenho entre as safras da laranja e da manga. Por lá morava também um menino, que também tinha um pai. Lusco-fusco, carafusco, cafuzo, cafuz. Pai dele, artista das mãos, manejava a madeira. Homem escurecido a serviço dos mesmos patrões do pai dela. Bancos, banquetas, cavaletes, tamboretes, vassouras. 

Dia de feira os pais desses e de tantos outros meninos se encontravam antes da alvorada e ia aquele grupo com as carroças cheias ansiando retornar não com carga pras mulas puxarem, mas com o bolso pesado do “cascalho” das vendas. Quando cada vassoura e cada saco de farinha-seca já tinham seu dono juntavam-se os pais, filhos e mulheres. O cascalho virava um corte de tecido, uma prenda nas festas da Paróquia de São Cristóvão, uma máquina de costura pra filha, uma roupa pro filho ir aprender. Menino tem que saber o ABC. Uma roupa só. Segue a trilha, estuda e volta. Guarda e conserva a roupa pra próxima lição. 

Mas...ai meus ais...nos dias de calor o ABC custa mais pra ser lido, fica difícil pra dedéu e - TCHIBUM- o menino cai na água do rio e o dia vira festa e é aquela quentura molhada de banho de meninos. Já não se tem mais a roupa de aprender. Agora é aproveitar pra nadar, pescar, contar mentira. O segredo da felicidade, doses alternadas de banco de escola e tombos no rio. E eu sempre sentirei o cheiro de água doce na letra desenhada do menino, meu avô. E por mais loção e colônia que se passe, as mãos da menina - minha vó – sempre terão o calor da casa de farinha e aquele cheiro de goma de mandioca. 

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