sexta-feira, 18 de setembro de 2015


Abraço e punhalada a gente só dá em quem está perto 


Por Fernando Fiorese

Pessoal lá de casa, rapaz, nunca foi muito bom mesmo pra fazer negócio não. Vive trocando os pés pelas mãos. Pra você ter uma ideia, o meu avô por parte de mãe, quando pai dele morreu, ganhou de herança quatro alqueires de terra. Terra das boas. Eu era pequeno mas cheguei a conhecer. E lembro direitinho. Tinha casa de alvenaria, curral, uma tulha grande, três açudes, uma várzea que não acabava mais... Aquilo dava um arrozal e tanto. E vô ganhou a coisa assim, de mão beijada. Porque vivia numa merda desgraçada, uma penca de filhos pra criar, aí os irmãos dele ficaram com pena. Pois não é que quando vô morreu, uns quarenta e tantos anos depois, não tinha nem um pé de fruta a mais naquelas terras? Esse tempo todo, rapaz, e acredita que o sujeito não fez nem uma melhoriazinha que fosse no sítio? Fez foi deixar tudo caindo aos pedaços, que ele não tinha mais saúde nem pra consertar uma cerca. O pai bem que teimou até, mas a minha mãe e os bestas dos irmãos dela insistiram tanto que acabaram vendendo o sítio em três tempos. Pouco mais que nada, quase dado. E foi tudo pra pagar dívida, porque o velho deixou um montão de imposto atrasado e teve ainda despesa com cartório, advogado, essa coisarada toda. O restinho de dinheiro que sobrou mal deu pra bater a laje dos três cômodos da casa que a gente morava na época. 

Mas, em matéria de entrar em negócio furado, o pai também não fica muito atrás não. Esta casinha que a gente tinha lá no Itamarati, por exemplo. Coisinha à toa, simples mesmo. Mas, além de ser a único troço que mãe e pai tinham no nome deles, era todinha de alvenaria e, ainda por cima, ficava num terrenão. Que eu me lembre, devia ter aí uns doze de frente por quinze de fundos o terreno. Dava pra criar umas galinhas, botar horta, chiqueiro, até poço. E não precisava furar muito não, uns dez metros tava de bom tamanho. Que foi o que o vizinho da direita mais o da frente cavaram. Não fosse o tal de Zé Brito, hoje a gente tava no bem-bom. Diz o pai que é o melhor amigo que ele já teve na vida. Sei, amigo uma ova, rapaz! Um dia, sem mais nem menos, chegou lá em casa, disse umas coisas bonitas pra mãe, levou um saquinho cheio de balas pra mim e pras minhas irmãs e chamou o pai porque precisava de uma conversa urgente com ele. Assim, como quem não quer nada. Aí, os dois foram lá pro bar de Durvalzinho, ficaram umas horas, Zé Brito deve ter pago umas pingas e coisa e tal... Só sei que pai, quando voltou, tava resolvido a vender a casa. Porque a filha de Zé Brito ia casar em maio e ele fez uma oferta muito das boas. Coisa de pai pra filho, um dinheirão. Negócio pra não perder de jeito nenhum. Dava pra comprar uma outra igual ou melhor, mais perto da rua. E quem sabe, com o que ia sobrar, a gente ainda não arrumava uma furreca velha pra dar umas voltas por aí? 

Quando foi ver, com o dinheiro que Zé Brito deu de entrada, a única coisa que pai conseguiu mesmo foi alugar um barraco de chão batido, ainda mais no meio do mato. Onde a gente tá morando até hoje, bem depois do outro lado do rio. Enquanto isso, rapaz, o tal de Zé Brito reformou a casa pra filha, levantou mais dois cômodos, fez um banheiro direito, varanda na frente e atrás... Aquilo lá virou um casão. Até o poço, o safado mandou cavar. E ainda ficou enrolando bem um ano e tanto pra pagar as três últimas prestações que faltavam. Cada hora era uma coisa diferente. Dizia que ficou todo endividado por conta da reforma da casa, que tinha levado uma pernada do cunhado, que a mãe tava nas últimas e só tinha ele pra ajudar... O pai é mesmo um trouxa! Tanto que, pra quitar a dívida, acabou aceitando um par de enxadas, não sei pra quê, e uma égua que a gente nem tem onde enfiar.

Foi por estas e outras que, quando ouvi o pai na porta de casa fazendo negócio com aquele sujeito que eu nunca tinha visto mais gordo, pensei logo que, mais uma vez, a gente ia ficar no prejuízo. Porque quem não nasceu pra esse troço de comprar e vender as coisas só leva na cabeça. Então, era assim: o pai falava o quanto o homem ia sair ganhando em comprar na mão dele e o sujeito danava a reclamar do preço absurdo que ele tava pedindo; o pai listava as qualidades do que tava vendendo e o fulano desdenhava de uma por uma; o pai mencionava os outros interessados e o tal não se fazia de rogado e retrucava que também tinha outras em vista. – Pode conferir se quiser, tudo na mais perfeita ordem, de primeira. – Mas tá precisando de um bom trato, colocar umas coisinhas no lugar. E isto custa dinheiro. – Olha que não tá gastando quase nada e ainda vai ganhar algum mais pra frente. – Isso se ficar do meu jeito, do jeito que eu penso que deve ser, porque até lá... – Até lá, tem um pé de boi em casa. Faz qualquer serviço pesado. – Isto é o que o amigo tá dizendo. Na hora do vamos-ver, aposto que eu vou morrer com mais algum. – Que nada! Nunca teve outro dono. Um pouquinho de tato, um agradinho besta, e a coisa engrena. – Qualquer problema, eu volto aqui e o amigo é que vai ter que dar um jeito na coisa. – Problema nenhum. Pode confiar. 

Ficaram neste chove-não-molha, nesta lenga-lenga, pra mais de hora. O homem cheio de não, de mas, de talvez-quem-sabe. O pai, mais um pouco e nem pedia um sinal pro sujeito. Foi só quando os dois ficaram assim sérios, apertaram as mãos e o homem passou um canivete muito dos sem graça pro pai que eu vi que o negócio tava fechado. Aí o sujeito desapareceu bem uma semana. O pai naquela aflição, rapaz, toda hora indo espiar a estrada. O caso é que, quando a gente ouviu o barulho do carro parando lá fora, ele foi o primeiro a correr pra porta. De lá mesmo, mandou mãe arrumar as tralhas da Cirlene, dar uma ajeitada nela, colocar um roupa que prestasse, passar uma água na cara, uma escova no cabelo, e correu pra receber o homem no portão. Daí a pouco, o pai entrou em casa carregando aquelas coisas nos braços. Foi a prova de que era mesmo o maior trouxa do mundo. Uma cesta básica, dois litros de pinga e mais aquele canivetinho sem graça. Rapaz, isto não paga nem meia filha!


Sobre o autor

Fernando Fiorese nasceu em Pirapetinga e reside em Juiz de Fora (MG). Publicou Aconselho-te crueldade (contos, 2010, agraciado com bolsa da Fundação Biblioteca Nacional)), Um dia, o trem (poemas, 2008), Dicionário mínimo: poemas em prosa (2003), Murilo na cidade: os horizontes portáteis do mito (ensaio, 2003), Corpo portátil: 1986-2000 (reunião poética, 2002) e Trem e cinema: Buster Keaton on the railroad(ensaio, 1998, prêmio de publicação no II Festival Universitário de Literatura promovido pela Xerox do Brasil e revista Livro Aberto). Poemas, contos e ensaios de sua autoria figuram em periódicos e antologias publicados no Brasil e no exterior (Argentina, Espanha, EUA, França, Itália, Portugal e Suíça). É professor da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Juiz de Fora. Um chão de presas fáceis contou com patrocínio da Petrobras para seu desenvolvimento.


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