sábado, 6 de junho de 2015

Mistureba sem licença poética, por Evandro Rota (composição a partir das obras de Harry Emans e Reiner R Mendez) 


Por Manoel Herzog

Passado um tempo de minha viagem a Cuba, hoje ando nas ruas brasileiras em profunda reflexão. Tomo meu chope no Independência, a nostalgia de um santista que, bom santista, almeja a vida carioca sem largar o ranço paulistano. Como um bom santista, daqueles que há poucos dias nesta mesma Praça da Independência vestiam suas camisas amarelo-cbf e batiam panelas insanas, felicito-me por não ser assediado aqui como fui em Cuba.

A felicitação dura pouco, logo a velhinha que vende drops, o poeta com a desgraça de um livro autoral, o pivete pedindo lhe pague um refrigerante. Saudades de Zulaima, o assédio em Cuba tem mais charme.

Da minha mesa parisiense, que Santos parece Paris, tomo meu café anotando displicente um bloco de notas. Faz frio em Santos, usam-se boina e cachecol, pareço um intelectual de esquerda. Olho o pivete no sinal da Marechal Deodoro, ele equilibra limões, três limões que alterna entre duas mãos frenéticas. Um dos limões cai, ele faz cara de desolado e sai pedindo óbolos nos vidros dos carros. Nenhum abre.

As moças do subúrbio passam pela calçada que imita Copacabana, ou a rue de Rivoli, comento com um senhor ao lado que vão ao shopping gastar em bobagens, os shoppings tem virado meros repassadores de produtos chinos, capinhas de celular e paus de selfie. Ele concorda, eu sustento que a crise do capitalismo está nivelando por baixo, estamos nos tornando um país de pobres – pobres de espírito. Ao afinarmos diálogos ele constata que nossas filosofias se chocam, acha que o capitalismo não tem crise, pois é o único sistema possível, que se autorrenova etc. Me hostiliza, manda-me ir pra Cuba. Quem dera.

Acho engraçado quando dizem que o Brasil está se cubanizando. Cuba resiste bravamente por meio século a uma covardia internacional, luta sozinha. Uma ilha de poucos recursos naturais, plantações de cana e fumo, garante saúde e educação a toda sua população. Não tem shopping nem SUV branco mas, afinal, quem precisa dessas merdas? Claro, dirão, a classe média precisa. Que seja. Mas tenho medo é que Cuba se brasilize.

O esoterista russo Gregori Ottonovich Mebes falou que “o patriotismo é o egoísmo coletivo”. Por trás do rumor de ignorância e maldade que ecoa nas ruas brasileiras ultimamente vem, travestido de patriotismo, um egoísmo brabo. Aliado ao desastre educacional que a ditadura nos legou (Darci já sustentava que a crise na educação brasileira é um projeto internacional), vivemos essa roça de hoje, neguinho achando bonito arrotar boçalidade. 

Quando voltei de Cuba encontrei no café um casal. Conhecendo a parelha, dispus-me a conversar amenidades, ocultando convenientemente a viagem. Dei-me mal: chegou outra amiga, risonha, espalhafatosa, bateu-me nas costas e mandou:

“E ae, que tal Cuba?”

Encolhi o pescoço e fulminei-a com um olhar reprovativo. Deu-se conta da temeridade e fez cara de perdão. Tarde. O varão, indignadíssimo, começou uma peroração, que eu era um comunista caviar, um deslumbrado que ia a Cuba mas não largava o osso, um tiete de Chico Buarque etc. Calmamente, ignorando a hidrofobia, voltei-me pra amiga e falei:

“Eis a diferença entre Brasil e Cuba: lá o cidadão mais simples tem dois, três cursos superiores, leu, conhece música, pintura. Aqui, a elite dá este show de boçalidade.”

Ele ainda vociferou, de que adianta curso superior e passar fome. Levantou-se irado e foi embora, enquanto minha amiga começava a chorar de desgosto e arrependimento.

Zulaima, formada em química e educação física, no circuito turístico cubano fazia seu michê discreto. Lamentei isso, as moças se oferecendo a turistas de meia idade com cara de generosos ou bobos. Cuba, não se segurando só com recursos agrícolas, apelou pro turismo, atraindo todo o ônus moral que o turismo carreia. Se o patriotismo é o egoísmo nacional, como afirma Mebes, arrisco que o turismo é a prostituição coletiva. Não é sem consequência que o estrangeiro entra, usufrui e sai. Não é “lavou está novo”. Mais que a abertura aos EUA, que disso o povo cubano parece bem vacinado, creio que o turismo predatório possa trazer à ilha sérias consequências – por exemplo fazer rebrotar seu antigo status de bordel dos EUA. O imperialismo é ardiloso, ataca na base, na educação e na moral do povo que pretende conquistar.

 De todo o balanço tiro a viagem a Cuba como importantíssima pra minha visão de mundo. Voltei, se não mais socialista, por certo mais anticapitalista.

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