Obra de Victor Rodriguez
É assim que se passa
Por Luiz
Vita
- Você
já quis ser outra pessoa?
Não
apenas ter outro corpo por razões estéticas - ser mais alto, mais magro, enfim,
mais bonito. Falo em ter o corpo e a alma de outra pessoa. Ser o outro, o
desconhecido, aquele com quem cruzamos na rua e do qual não tínhamos, até
aquele momento, conhecimento da existência.
Admito
que já cheguei a pensar em trocar de corpo e de lugar. Já me vi caminhando por
lugares onde nunca estive, ou que reconheço por fotos de revistas, guiando um rebanho
de cabras num terreno pedregoso, onde cresce um capim muito ralo e amarelo,
quase seco, que alimenta os animais apenas o suficiente para mantê-los vivos e
produzindo leite. Animais que há gerações se acostumaram com o pouco que
conseguem tirar dessas pedras, mas que retribuem com leite quente e espumante
essa generosidade rude, mas sincera da natureza. Eles parecem resignados
àquelas paragens inóspitas. Quando o sol está muito forte, sem árvores que
produzam sombra, descansam na entrada de cavernas úmidas, na verdade buracos
escavados em encostas onde o solo é menos pedregoso.
Já me vi, em sonho, falando fluentemente uma língua estrangeira que, no meu eu presente, mal consigo balbuciar ou acompanho aos trambolhões, envergonhado por estar cometendo erros tão grosseiros, fruto mais da timidez do que da ignorância. Já me vi também imbuído de uma coragem até então desconhecida, que me levou a percorrer becos escuros e manter o passo firme mesmo com ruídos suspeitos ao redor. Ou com o silêncio absoluto, que paralisa a respiração.
Numa das primeiras vezes em que pensei estar na pele de outro, fazia uma viagem noturna de ônibus e olhava pela janela através do breu que se adensava à medida que os faróis dos carros desapareciam. Em pontos mais distantes, transpondo as cercas de arame farpado, que impedem os animais de criação de cruzar a pista, vi lampejos pálidos, como velas inúteis na escuridão. Imaginei quem estaria protegido e aquecido sob aquela luz e o invejei por ter, naquele momento, a consciência plena de que estava vivo. O ônibus, às escuras, com o ronco do motor mantendo um zumbido constante, se deslocando veloz na noite profunda, era um mundo paralelo que só passaria a existir de fato no momento em que parasse em algum posto de abastecimento. Aí sim, no meio daquela pequena aglomeração humana, num local afastado (como conseguiram chegar ali e ali permanecer?), passaríamos a existir.
Já me vi, em sonho, falando fluentemente uma língua estrangeira que, no meu eu presente, mal consigo balbuciar ou acompanho aos trambolhões, envergonhado por estar cometendo erros tão grosseiros, fruto mais da timidez do que da ignorância. Já me vi também imbuído de uma coragem até então desconhecida, que me levou a percorrer becos escuros e manter o passo firme mesmo com ruídos suspeitos ao redor. Ou com o silêncio absoluto, que paralisa a respiração.
Numa das primeiras vezes em que pensei estar na pele de outro, fazia uma viagem noturna de ônibus e olhava pela janela através do breu que se adensava à medida que os faróis dos carros desapareciam. Em pontos mais distantes, transpondo as cercas de arame farpado, que impedem os animais de criação de cruzar a pista, vi lampejos pálidos, como velas inúteis na escuridão. Imaginei quem estaria protegido e aquecido sob aquela luz e o invejei por ter, naquele momento, a consciência plena de que estava vivo. O ônibus, às escuras, com o ronco do motor mantendo um zumbido constante, se deslocando veloz na noite profunda, era um mundo paralelo que só passaria a existir de fato no momento em que parasse em algum posto de abastecimento. Aí sim, no meio daquela pequena aglomeração humana, num local afastado (como conseguiram chegar ali e ali permanecer?), passaríamos a existir.
Já
me reconheci numa foto quase desbotada, em meio a escombros, depois de uma
noite insone de bombardeios. Cheguei a procurar documentos em arquivos públicos
em busca de registro que comprovasse a existência do outro-eu. Também caminhei
por cemitérios cristãos e judaicos, em busco de nomes que me foram revelados em
sonhos.
Você
já chegou a pensar que, na verdade, você não existe e que sua história é apenas
um álibi do outro? Pois pense nisso. Estou quase seguro que é assim que se
passa.
Luiz Vita é Escritor e crítico de cinema. Como crítico escreve para o
site Cineweb e para a agência Reuters. Participou da coletânea de contos “Dos
Medos o Menor”, editada pela Terracota, e publica poesia e ficção em sua página
no Facebook (www.facebook.com/vita.luiz).
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