quinta-feira, 26 de março de 2015

Obra de Sarolta Ban


Por Diego Callazans 

Não estava convicto de, ao chegar, ter dado as duas voltas de costume na porta. É provável que o tenha feito, mas não sabia ao certo. Não era raro sentir-se assim. Certa vez retornara sete vezes para verificar, perdendo um compromisso importante, o que arruinou sua primeira oportunidade de promoção em mais de vinte anos de empresa. Por certo, seu chefe daria um riso curto e gentil se soubesse a razão do atraso – um riso de quem diz “só você” – e não seria preciso pedir desculpas, como o fez tantas vezes, o que tomou preciosos minutos de um dia cronometrado. Tão esdrúxulo e banal era o caso que renderia piadas para o bar na sexta. Ele mesmo riria, entre a tônica e o suco. Não que lhe fosse engraçado. Mas por tanto tempo convivera com suas manias que, como em longos casamentos, não mais se levava a sério. Seria um caso para divórcio, cansado que estava dos rituais, dos receios, dos segredos. E, a bem da verdade, o sexo já não era dos melhores. Não era sem cansaço que remoía as lembranças pela certeza das voltas na porta. Suas ranhuras comportamentais tanto o irritavam que ansiava pela oportunidade de se livrar de si. Era isso – e a forma como a lua cheia lembrava-lhe a mãe doente, coitada!, que tomara uma dose excessiva de barbitúricos e fora dormir nos braços do Abismo – que tinha em mente no início daquela noite estranha de Agosto, quando seu irmão foi visitá-lo e quebrou o braço. E agora, ossos expostos, acalentava com seu arfar contínuo a criança inquieta que arrastou consigo. Não havia como ignorar seu braço aberto ao vento, e o modo como sua vida parecia escorrer pela boca. Não estava distante o socorro. Diziam 2 não ser enxeridos os médicos. No entanto, como sair da cabana se, quando observara da última vez, a porta para a mata estava aberta e o rifle – só imponência, sem balas – tão bem oculto, por conta da visita do menino? Buscou na cachola o traçado da manhã – longínqua para uma mente vaga, dada a minotauros – quando a arma, sua salvação relutante, fora guardada. Não a encontrando em canto algum do almoxarife encefálico, voltou um pouco mais, ao dia em que a trouxera pra casa. Não conseguiu firmar. Rememorou, então, os passos até a loja de caça anos antes, tentando reconstruir quadro a quadro toda a cena, mas desistiu porque os lapsos geravam sombras dançantes, que, ao se deterem mais na lembrança, ganhavam como que dois olhos. Sua visita à loja podia ter sido infrutífera – ou não ter sido. Não havia como garantir que tinha comprado o rifle. Resolvera, isso sabia, adquirir um da última vez que ouviu os ruídos. Talvez dera por concreto o que era tão só intento. Na tentativa de restabelecer as ideias, apelara demais ao delírio. Não seria o primeiro caso. No dia anterior, ao desfrutar de seu melhor assento, dera com o duro chão carcomido da sala de estar. Questionara de pronto quem lhe tirou a poltrona, depois se o haviam feito e, por fim, se já tivera uma. Olhando ao redor, concluíra que não. Diversos outros móveis que julgava possuir também não estavam lá, o que o levara enfim a constatar a discrepância entre as coisas em si e sua impressão delas. O que disso resultou foi um vazio que ele podia guardar entre as mãos e que não quietava em canto algum do corpo. Somente o fumo lhe aclarava a vista. Foi até a estante por seu cachimbo, e foi uma surpresa achá-lo. Ardeu a erva e pitou. Andou pela cabana a pôr neblina nas vagas. Deliberou suas sandices. E concluiu, não sem riso, que os objetos desapareciam quando esquecidos. Era preciso 3 lembrar-se deles continuamente ou poderia perder-se em expectativas. A ideia encheu-o de temor – e delícia. E o esforço pra tê-la amplificou o cansaço. Foi pôr-se à rede pro merecido repouso e deu-se à noite, com suas carícias de sândalo. Sua mão desceu ao submundo para aventuras proibidas, e isso lhe devolveu a altivez. Teria dormido não fossem os gritos do quarto ao lado, vindos do irmão e sobrinho. Perdera a poltrona, o rifle e agora o sono. Mas estar atento era o caso, com a porta aberta pra mata. Arrepiou seu senso a certeza de que já não era o caso de trancas ou rifles que não existiam. A porta estava aberta há algum tempo. Um dia esteve fechada? Não mais sabia. Moveu-se só o tanto para subir os lances e dar os passos que o levaram ao quarto. E lá ficou com os parentes, calados. Fincou os olhos numa fresta por movimentos externos. Se invadiram a cozinha, calculou – decerto que o haviam feito! –, não tardaria chegarem ao saguão e assim tomarem a escada. Nada difícil a um deles, a qualquer um, galgá-la em bem poucos lances. E logo estariam na entrada do quarto. Ele mirou pela fresta. Não via senão frações do imóvel. Ao coletar os fragmentos e reuni-los, a imagem formada era menor do que a versão da casa que guardava na ideia. O vácuo que a mente gerara enfim sugava o ambiente. A cabana se encolhia para caber no conceito. E seus ruídos comuns se distorciam para moldar-se ao espírito. Ouvia vozes. Viriam de baixo. Por certo tomaram o saguão, e subiriam a escada. Voltou seu rosto para o irmão, que parara de gemer por conta do braço, que uma das criaturas – por certo – quebrara, e agora respirava lento e baixo. O menino fixava, no tio, seus olhos sentenciosos, a arrastá-lo ao abismo. A correnteza era forte; tomou distância. Moveu sua atenção à porta, aos invasores. Mas o olhar do menino ainda puxava. Era tal peso que 4 apagava a criança. Seu tio adivinhou, ainda de costas, que ao virar-se não mais veria. Já não estava. Mas seu olhar punha arranhões nas paredes, sangue no piso e rombos na janela. Tentou argumentar consigo que o pequeno abandonara o quarto, assustado com os gritos do pai espancado. Mas não havia outra saída, senão a porta que o largo corpo do tio bloqueava. Era preciso que houvesse outra saída do quarto! O garoto não estava lá! Seu tio acorreu à janela. Trancada. Pregada. Do lado de fora do vidro frio, a mata era borra ao leite. Notou que não estavam no andar de cima. Talvez não houvesse um andar de cima. Nesse caso, não havia escada. As criaturas estavam mais próximas do que supunha. Batiam à porta naquele instante. Seus sons lembravam uma voz grosseira. Como a de um homem que conhecera no bar e o convidara à sinuca. Quis sorrir; segurou. A familiaridade, por certo, era uma artimanha dos monstros, pra evitar resistência. Não que fosse durar muito. Já não dormia há três dias. Se estava lúcido, era à força. As criaturas vinham do lado denso da mata. Mantinham certa distância da casa, mas os infantes as atraem. Por isso, não era bem-vindo o pequeno. Ele falara ao irmão. Avisara. O menino agora devia estar lá fora, à mercê das feras. Nada podia fazer. Nada podia fazer. O tempo estava contra ele, o tempo. Não seria possível ou aconselhável arriscar-se a uma busca. Não seria. Como estava frio naquele quarto fechado, em Novembro! Olhou o irmão mais uma vez. Estava calmo. Nenhum ruído mais vinha de sua boca azulada. Os sons externos, porém, aumentavam. Ele avançou contra a janela com uma cadeira. Não havia cadeira. As mãos sentiram o impacto. O vidro arrebentou, ensanguentando-as à altura dos pulsos. Sentia os cacos nos vasos. Chegariam ao coração muito em breve, como monstros tomando o pátio interno. Os invasores venceram. Sua 5 respiração alterou-se. Seu peito batia com o tique-taque de uma armadilha caseira. Abria e fechava, lançando-o, já fraco, para frente e para trás, como um marinheiro virgem que descobre o amor e a sífilis num porto longe do lar. Mirou o irmão. Seus olhos vítreos, em horror palpável. Notou, enfim, como se lembrasse, que além do braço quebrado, seu irmão também ferira o peito e a perna esquerda, e tinha o rosto marcado. Trazia ainda a traqueia exposta por um pedaço de vidro, que se encravara bem fundo. Essa chaga fizera com que tremesse inteiro. Dela espirrara sangue por todo o quarto. Mas estava agora já calmo; já tudo em paz. O ruído no exterior foi por instantes interrompido, depois ganhou novo corpo. Poriam abaixo a porta. Quis impedir, não podia. O cansaço se apossou de seu corpo. Ele pôs-se ao chão pra morrer, com seus parentes. De um lado, o irmão exangue. Do outro, o sobrinho, envolto numa manta, com uma marca roxa na glote. Dormiam todos em berço aberto. Teriam sonhos? Rompeu-se a última barreira ao avanço, com a porta abaixo. Logo foi fim do ruído. Olhos correram, nervosos, por todo o quarto. Uma criatura recolheu-se a um canto, moída. As outras trataram das formalidades. Os invasores haviam, enfim, tomado a cabana.


Sobre o autor
Autor do livro "A poesia agora é o que me resta" (Patuá, 2013), Diego Callazans nasceu no dia 26 de julho de 1982, na cidade baiana de Ilhéus. Mora em Aracaju desde os cinco anos. Vários poemas seus foram publicados em revistas literárias – tanto impressas, dentre as quais a Celuzlose, a Novitas e o Jornal RelevO, quanto digitais, como a Mallarmargens, a Diversos Afins, a Blecaute e a Reversos. Contos seus foram publicados pela Mallarmargens, Portal Cronópios e Germina. Seu segundo livro de poemas está no prelo. No momento, desenvolve seu primeiro livro de contos.





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