quinta-feira, 19 de março de 2015




Por Manoel Herzog

O DIAMANTE AMBARINO

(Clique aqui para ler a primeira parte da história)


Parte II


Pois os contrabandistas nigerianos que compraram a minha pedra estavam escondidos no porão de um navio. Saíram de noite pra ir numa boate, e pegaram o meu táxi. Logo vi que eram contrabandistas nigerianos, porque falavam francês.

Fala-se francês em Nigéria, pai?

Mas claro. Deixa eu contar. Vendo que se tratava de dois grandes contrabandistas nigerianos, comecei a conversar com eles, em francês, claro, e logo falei que tinha um diamante ambarino etc. Ficaram interessadíssimos e me disseram que pagavam até cinco mil e quinhentos mangos por uma pedra daquelas. Nem pechinchei, era exatamente o valor que eu precisava pra você ter um parto seguro, eu acho que essas coisas de Deus e do Diabo vão se plantando na vida da gente e a gente deve saber interpretar. Assim foi que vendi a pedra pros dois. Mais tarde, busquei os dois na boate e deixei num mocó bem escondido no cais do porto de Santos, ainda vi quando eles entraram escondido no porão do navio e o navio partiu pra singrar os mares do mundo. Eu sabia que eles iam vender aquela pedra em algum porto da Europa, talvez por cinco vezes mais do que me pagaram. O lucro dos contrabandistas é de cinco por um. O dos capitalistas mineradores é muito maior. Por isso que eles são mais ruins.

Quem tem mais lucro é mais ruim, pai?

Isso. Assim sendo, naquela noite quando cheguei em casa a bolsa da barriga da mamãe estourou e a gente precisou ir correndo pro hospital. Os médicos capitalistas, uns grandes duns crápulas, me disseram, Se quiser salvar sua filha vai ter que pagar cinco mil e quinhentos mangos, Pois salvem, mercenários. E tirei do bolso um bolo de dinheiro com sangue de dedo e esfreguei bem na cara dos médicos capitalistas, e o chefe deles passou a me chamar de doutor pra cá, doutor pra lá, doutor tome um cafezinho, espere o nascimento de sua filha na sala vip. E então você nasceu linda e maravilhosa e estrela da minha vida desse jeito, com os cuidados dos melhores médicos que se podiam pagar. Por causa disso é que muitas vezes essa história me parece abençoada, coisa de Deus.

...

Sete anos depois me aconteceu a cobrança da fatura, e daí não sei mais se era coisa de Deus ou do Diabo, filha. Esse número sete. Quando você fez sete anos a mulher do francês apareceu em Santos e pegou justo o meu táxi.

Pai, está claro que sua história é mentira. Você aprendeu francês faz só cinco anos.

Perfeito. Acabou a história então, se você não acredita no que eu falo.

Não pai, conta, por favor.

Não era o seu parto, agora que lembrei, foi o parto da sua irmã.  

Nada disso, foi o meu mesmo.

Não me interrompa mais. Eu peguei aquela senhora francesa no mesmo ponto do Gonzaga e, mais uma vez, burlei a vez dos meus companheiros na fila, posto que só eu naquela cidade falava francês e pilotava táxi. Era um tipo de madame bastante conhecido na França, usava um chapelão, fumava de piteira, usava umas saias plissadas enormes e um véu negro caindo do chapelão e cobrindo o rosto, o que denunciava sua condição de viúva e fabricante de champanhes caríssimos. Vinha puxando uma enorme duma mala, mala curiosíssima, com o palhaço amarelo, aquele, desenhado em cima. O palhaço da loja de hambúrguer. Você tem medo de palhaço?

Claro, pai, toda história de terror sua tem esse palhaço ou o Mickey.

Exatamente. Pois saiba você que eu também tenho muito medo desse palhaço. E quando o vi estampado na mala, e quando vi que a dona da mala era francesa, e que os franceses odeiam hambúrguer e palhaço, e vi que era o mesmo ponto de táxi e que fazia exatos sete anos do outro francês, já era tarde, eu tinha colocado a mala no porta-malas e a francesa no banco de trás do meu carro. Ela me pediu que a levasse ao porto e depois à Avenida dos Bancários, uma rua chique onde morava, em Ponta da Praia. Aquela senhora francesa tinha ainda uma outra peculiaridade.

O que é isso?

Uma especialidade, uma coisa diferente. Pois ela tinha, pasme, seis dedos numa das mãos. E, num desses dedos, seguro que o sexto dedo, um anel escandaloso, despauterado, despótico, metafísico, anárquico e exibido, um anel de diamante ambarino. O mesmo, mesmíssimo anel que eu havia vendido aos contrabandistas nigerianos.

Uau.

Eu sabia que era o mesmo anel, e ela ainda me confirmou, disse que havia comprado de uns bandidos no porto de Marselha, bandidos nigerianos que lhe disseram ter adquirido o anel no Brasil. Ela percebeu que aquele era, só podia ser, o anel de seu marido Françuá, desaparecido na América do Sul havia sete anos, sem dar mais notícias, e cujo corpo ela procurava desesperadamente. Os contrabandistas ainda lhe teriam dito o local em que compraram o diamante, e que o fizeram de um motorista de táxi que falava um francês perfeito, impecável, como se parisiense fosse. Quando ela falou isso eu gelei, mas disfarcei bem, acho que colou, Minha senhora, há inúmeros motoristas poliglotas em Santos, é uma cidade que respira cultura.

Ela mandou que eu parasse o carro em frente a um navio com guindastes enormes e ficou olhando, calada, uns quinze minutos, pro horizonte, como fazendo uma prece pro seu amor ausente. Exatamente ali onde embarcaram escondidos os contrabandistas nigerianos. Depois, sem dizer uma palavra, mostrou o endereço de sua casa e toquei pra lá. Paramos na porta de um prédio muito chique, desses de um apartamento por andar, esses onde não mora ninguém e dizem que existem pra lavar dinheiro de capitalistas portugueses. Ela então me pediu, em francês, obviamente, que levasse sua mala até o décimo-terceiro andar, onde vivia.

Como se fala isso em francês, pai?

Esquevupuvê levê mamalê laencimê pur muá.

Acho que eu também sei falar francês.

Deve saber, filha de peixe. Pois eu fiquei foi muito cabreiro de ter que subir com a mala, mas fui, porque com uma dama francesa é necessário a gente ser um cavalheiro. Quando peguei na mala, vi que o rosto do palhaço amarelo da loja de hambúrguer estava transfigurado, como se o monstro estivesse com muito ódio de mim. Aqui gelou a minha espinha.

Ele é mau, né pai, o palhaço?

Muito mau, mausíssimo. Mas, eu não sou fraco - mesmo assim peguei a mala, pesadíssima, com muita aflição, e levei até o décimo-terceiro andar, pra onde subi com a madame francesa.

To ficando com medo, pai.

Ah é? Pois não viu nada ainda do que me aconteceu. Não contente de me fazer subir com aquela mala pesada, o peso de um corpo de homem, quando cheguei lá em cima falei pra ela, Nossa, madame, quesque iliá danlamalá, o que quer dizer “o que que tem nessa mala minha senhora”. Madame queria que eu abrisse a mala e visse com meus olhos, eu me neguei, mas ela praticamente me obrigou, pegou com raiva no meu braço e me fez abrir.

Você não abriu, né?

Abri. Infelizmente, abri.

O olhar dela estava atônito, dava pena ver um início de desespero, a brincadeira havia passado do limite de uma criança, mas eu sabia que ela sabia que era uma história, uma das tantas com que a gente buscava dar graça pras coisas sem graça que acontecem na vida da gente. Ela estava com medo porque queria estar com medo, era um medo literário, sabia que o final da história libertaria, porque tudo sempre acaba bem.

E o que tinha na mala, pai?

Não gosto nem de lembrar, fico arrepiado, olha só. Adivinha o que tinha lá dentro.

O francês morto?

Não. Dois hambúrgueres. Alface. Queijo. Molho especial. Cebola. E o pior de tudo: um pão de gergelim.

Falei com ar solene.

A expressão de anticlímax durou segundos, foi seguida de uma gargalhada, um riso nervoso de quem se libertou de um grande medo. Riu que urinou no banco do carro, que não era mais um táxi. Ficamos rindo muito tempo, até dar um ai de alívio, rir mais um tico e respirar gostoso.


Pai, não era esse o final da história.

Mas claro que não. Quer saber o que aconteceu de verdade?

Quero.

Quando eu abri aquela mala estava lá de fato o francês morto, parecia um santo, desses que o corpo não apodrece nunca. Eu olhei com uma expressão de pavor pra madame francesa, ela se aproximou de mim e pôs a mão na minha cabeça. Daí, ela tirou as luvas e, depois das luvas, tirou o sexto dedo, aquele que tinha o anel de diamante ambarino. Ela me deu o dedo, um dedo perfeito, íntegro e perfumado, nem parecia um dedo falecido há sete anos. O dedo, com anel e tudo, ela me determinou, com um simples gesto de apontar, que o a encaixasse na mão do morto, que estava desfalcada. Eu fiz o que ela mandou, e o dedo como que se soldou de volta no corpo, nem cicatriz ficou. Fechei a mala e me levantei. Daí, ela falou, em francês, traduzo.

Deus traça caminhos insondáveis pra gente nessa vida, e usa o Diabo como seu mensageiro. O plano, no fim de tudo, sempre é o de Deus. Você fez coisas erradas, mas Deus permitiu porque era pra poder nascer sua filha linda e bonita e maravilhosa e estrela da vida de todo mundo. Agora vá embora e não peque mais. E não olhe pra trás senão vira estátua.

E foi o que eu fiz. Fim.
  
Pai, não foi assim que eu nasci, depois de quase a mamãe me perder. Você falou outra vez que tinha um homem santo que rezou. Depois, de outra vez, falou de fadas. Depois, de unicórnios. Qual dessas histórias é verdade?

Todas as histórias são sempre verdade.

De certo, em todas as suas histórias, é que eu quase não nasci. A única verdade nisso tudo. Então as histórias são melhor que a vida.

Não se a vida for cheia de histórias, filha. Deus te abençoe.

  

FIM

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