quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

Montagem de imagem por Evandro Rota


O VIVEIRO DE PALAVRAS

Por Manoel Herzog 

Quando Deus criou a linguagem, fez ao modo de criador, um viveiro. Botou as letrinhas pra cruzar, na proporção de cinco machos pra 21 fêmeas. Aos machos chamou vogais, às fêmeas consoantes. E promovendo cruzas de todas as possibilidades povoou o mundo, e segue povoando de palavras ressignificadas e neologismos.

Na experiência humana promotores do nefasto machismo buscam nesse fato da Natureza que os homens possam justificar sua poligamia em prejuízo da mulher. Friedrich Engels esmiuçou o assunto, hoje sabemos que a "supremacia masculina", o direito de exigir a fidelidade sem prestá-la, o dogma da virgindade, o cinto de castidade aplicado à mulher, são aspectos mais ligados à economia, criação humana, que à Natureza. Mas, um fato é certo: o macho produz vários gametas, enquanto a fêmea um óvulo único. Logo, pra efeito de proliferação, basta um número reduzido de machos no meio do harém. Assim fez o Criador.

Eis que Ele próprio combina em si a totalidade, no momento em que criou as letras machos e fêmeas também cuidou do transgênero. Há, assim, letras divinas que amalgamam característicos masculinos e femininos. Curiosamente as letras do nome de Deus. Semana que vem trago aqui o poeta Waldo Motta pra explicar isso. 

Naquele tempo a língua era o hebraico, e o nome de Deus, Jeová, se escrevia com quatro letras, Iod, He, Vau e He (repetia-se o He). Os antigos esoteristas chamavam a isto Tetragrama Sagrado. Pois destas quatro letras andróginas derivam, no nosso alfabeto, o G, o I, o J, o H o V e o U, além do W. 

A letra Iod gerou concomitantemente o casal I e G, um vogal e uma consoante. A palavra inglesa God deriva diretamente dessa letra. O J, embora consoante, é na verdade um G andrógino, que serve pra pronunciar não guê, mas gê. Tem tamanha natureza masculina que até o pingo herdou de sua matriz vocálica, o I. Sempre que algum autoritário fala em botar os pingos nos ii, fico me perguntado o que aquela besta há de fazer com os jj. Se é que tem pingo pra tanto.

O He hebraico derivou no nosso H que, embora consoante, tem natureza neutra, não faz mais que perpetuar a essência do vogal que o acompanhe. É, portanto, uma letra cujo som sempre se apresenta vogal. Uma esposa submissa que serve seu homem. Tanto que se o Iod, na cabala hebraica, representa Adão, o He, aliado ao Vau (He-Va) significa o princípio feminino, Eva. 

Já Vau, este derivou no nosso alfabeto em duas letras, o V, obviamente, e o U. Parece que os antigos romanos pouco distinguiam V de U. Quando criança me intrigava na porta do Palácio da Justiça lendo a inscrição FORVUM. Perguntei pra mãe se a gente lia “fórvim”, o que me resultou numa repreensão severa, verdadeira aula sobre leis e princípios de Direito Romano. Enfim, naquela antiga Roma ainda tão próxima do Oriente ancestral, o U e o V eram um. Nós é que depois os dividimos e ainda viemos a criar o W, cujo nome aliás, significa justamente “double u”. Em língua inglesa ainda se usa chamar a letra “double v”. Os espanhóis também assim a conhecem: “doble v”.

Os escritores brincamos de Deus, criamos mundos que povoamos de palavras, geradas no nosso viveiro, onde cruzamos letras e aperfeiçoamos geneticamente a descendência. 

Pois bem: relato toda esta curiosidade histórica e deveras enriquecedora das culturas de nós todos pra explicar uma das minhas mancadas com UU e VV, que me fazem tanto reprisar os duros momentos de admoestação materna. Fui ao sítio em Mogi das Cruzes, estância rural de que cuido feito a menina dos meus olhos. É minha oportunidade de voltar a algum contato com a vida no campo, algo mais próximo da Natureza-Mãe, fugir desta vida louca de intelectual urbano. Uma vez em minhas terras, dirigi-me à vendinha, à bucólica vendinha, pra comprar mantimentos de passar uns dias no mato. Havia uma promoção de panetones, os que não se fizeram circular por ocasião dos festejos natalinos, agora baratinhos. Foi como adquiri, ao módico preço de R$.1,99, um legítimo Lavrattone. Não conhecia a marca, mas gostei do nome, bem apropriado ao local. Concluí que assim chamava por ser o panetone do lavrador, o homem que lavra a terra, lembrei até de uns versos de Drummond, nas palavras que tu lavras não vi, amor, valimento. Uma singela homenagem ao nosso homem do campo, este digno representante de um passado romântico que vem sendo suplantado pela miséria urbana, pelo êxodo do campo e por toda a desgraça que o agronegócio tem imposto à Humanidade, dentre as quais seu mais feroz subproduto, a música sertaneja universitária.

Quando cheguei com o Lavrattone em casa e dei um pedaço à minha santinha, explicando o nome do produto à luz da poesia saudosista de um bicho urbano em crise, tomei novo esculacho: “Não é Lavrattone, cacete, é Laurattone. De Laura. Lady Laura, aquela música tão linda do Rei. E de Laura, lembra? Falei tanto pra você casar com a Laura, ela que era mulher pra você, não essas tranqueiras que você arruma, blablablá.” 

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