segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

Imagem de Sam Weber


Por Marcelo Rayel

Ao Exmo. Sr.
Primeiro-Ministro
Downing Street, 10
Londres,
Reino Unido.

Exmo. Sr. Primeiro-Ministro,

Por meio deste, mui respeitosamente, faço recente relato das operações de tomada dos condados em território alemão, protagonizados pelo VIII Corps, em especial Belsen e Bergen, onde lá existe, como em todo país, um campo de concentração.

Esse relato diferencia-se do enviado à Vossa Majestade, o Rei George VI, cujo fulcro de interesse sempre será o de caráter humanitário, comum nos pertencentes à Casa de Windsor. Creio que todos os desdobramentos das missões efetivadas pelo VIII Corps em breve serão do conhecimento de Sua Majestade por intermédio do testemunhado pelos membros da Casa dos Lordes.

A tomada da região de Belsen-Bergen contou com a participação de tropas canadenses, como descrito em anterior missiva, após negociações com o Reichführer-SS Heinrich Himmler para uma zona de exclusão que tinha por único objetivo evitar o alastramento da febre de tifo. O acordo e rendição veio em 11 de abril, com assinaturas no dia 13 do mesmo mês. Tal instrumento incluía a liberação de vários membros da Schutzstaffel, apenas o comandante Kramer e um pequeno grupo de homens e mulheres da própria SS estariam no campo de concentração para certa organização e controle de internos dentro da instalação. A guarda continuaria sendo realizada por tropas regulares alemãs e húngaras.

O plano para tomada do campo determinava 14 de abril para o início da operação, contudo carecíamos de maior e melhor efetivo para o cumprimento de tal data devido as pesadas batalhas em Winsen e Walle. O reconhecimento de terreno precisou ser efetuado, tendo o motorista e o Primeiro Tenente John Randall, do Serviço Aéreo Especial Britânico, encontrado o citado campo de concentração por acaso.

Assim, a tomada do campo de concentração de Belsen foi levada a cabo em 15 de abril. Concomitantemente ao controle dos campos menores, perto de batalhões do exército nazista dentro desses condados, também conhecidos como campos-satélites, recebemos relatos de ações covardes e vingativas dos membros da SS que foram liberados pelo acordo supracitado. Cerca de 170 Kapos foram assassinados assim que esses membros chegaram a essas instalações, e em 20 de abril quatro aviões de combate alemães atacaram o campo, provocando danos no fornecimento de água e baixas de três oficiais médicos britânicos.

Cabe alertar V. Exª. que soubemos de relatos de prisioneiros libertados durante os cercos e encontrados no trajeto contrário aos nossos deslocamentos. As tropas aliadas, infelizmente, não puderam, devido à urgência na tomada e liberação dos campos, identificar cada um dos internos. A preocupação advinda desse cenário se deve à eventual infiltração de oficiais e colaboradores da SS entre os prisioneiros como rota de fuga, alguns que, inclusive, se transportaram de trem para regiões já ocupadas pelas forças de libertação.

Receio, Exmo. Sr. Primeiro-Ministro, que vários desses membros tanto do exército quanto da SS se refugiem em locais dos continentes americanos, dada a vasta variedade étnica encontrada nesses países e parco controle de imigração em especial nos países da América do Sul. Acordos como o feito em Belsen infelizmente tiveram na sua deliberação o controle de tifo e o resumido efetivo do VIII Corps após as batalhas de Winsen e Walle.

Lamentavelmente, Exmo. Sr. Primeiro-Ministro, as decisões no comando de qualquer unidade militar nem sempre são as mais agradáveis ou responderiam com extrema eficiência às demandas e desejos de V. Exa. Foram inúmeras as baixas na Normandia e a resistência encontrada em Winsen e Walle pouco parece com o brando inferno descrito por Dante ou por quaisquer instituições religiosas espalhadas pelo mundo, conforme a crença. Foram severas baixas. O exposto é quase sempre a mesma: o combatente, no campo de batalha, ferido de morte, em seu último suspiro, sempre reclama por sua genitora e roga para que a avisem de sua passagem. Se a crueza da pugna em Winsen e Walle não tivesse sido tão avassaladora, tal vitória teria nos custado maior poder de exigência na permanência dos oficiais da SS que foram liberados antes da ocupação do campo de concentração de Belsen. 

Segundo relatórios fornecidos pela Inteligência Militar, em sua Seção 9, as primeiras notícias do cerco precipitaram fugas de membros da SS por rotas que incluem Hungria e Itália. Sob identidade e passaporte falsos, vários desses facínoras, entre eles médicos que, em nome de um conhecimento tecnicamente macabro, se perfizeram de cientistas, embarcaram clandestinamente em vapores com destino a Brasil, Uruguai e Argentina.

Sabemos que os campos de concentração se tornaram parte importante da economia alemã. Independente da finalidade de fato e de direito, o que encontramos em Belsen foi a mais perfeita correspondência do que chamaríamos de mal. Exmo. Sr. Primeiro-Ministro, aquela é a embaixada do inferno! Moribundos sobreviventes, atolados em tifo, infestados por piolhos, sem banho, em profunda inanição, vagavam entre corpos em avançado estado de putrefação. Os mortos, sem exceção, em pele sobre osso pouco se diferenciavam daqueles que ainda estavam vivos. Foi difícil, nas primeiras horas, saber quem estava vivo e quem estava morto. As mulheres e crianças ainda apresentavam alguma sobra de energia para manifestarem algum tipo de afeto pela entrada da corporação, mas os do gênero masculino apenas observavam, inertes como um arbusto ou vegetação rasteira. E tudo aquilo em meio a um insuportável odor de carne apodrecida.

Ao observarmos os corpos, verificamos que pelo tipo de deterioração havia internos falecidos há semanas. Diferente de Dachau, não há fornos em Belsen. A providência do comandante Kramer era simplesmente deixá-los ali, junto com os prisioneiros ainda vivos, o que só fez aumentar a pestilência e demais chagas que encontravam em tal cenário o meio-de-cultura fundamental para crescerem em força e fatalidade. Pela aparência dos mortos, presume-se a causa mortis completa ausência de alimentação e hidratação, ou flagelos decorrentes da falta de comida e água. Uma característica também observada nos cadáveres era a projeção da parte final do intestino através do esfíncter, mas sem o perigo de presença de fezes, uma vez que há muito não ingeriam alimento bastante sequer para produzirem o bolo fecal. A presença de desidratação conferia à pele uma secura aterradora e as genitais masculinas nos remetiam a grotescas verrugas. Certamente, Exmo. Sr. Primeiro-Ministro, Cérbero era quem guardava a entrada daquele campo de concentração!

Entre as primeiras providências tomadas no controle de Belsen, a aplicação direta de defensivos sobre os internos, todos infestados por piolhos. Outro momento relevante daqueles primeiros dias foi o banho. Após instalarmos os chuveiros de campanha e os aquecedores de água, foi perturbador presenciar a forma como aqueles sobreviventes do pior holocausto que temos notícia até então se lançavam à agua quente. Principalmente as mulheres, cujo desespero por e a ausência de um banho decente depois de tanto tempo as fizeram deixar completamente de lado qualquer tipo de pudor. Tanto homens quanto mulheres esfregavam as barras de sabão sobre os próprios corpos esmaecidos com uma sofreguidão jamais presenciada tanto por mim quanto pelos meus comandados.

Entre as providencias sequenciais do trabalho naquele campo estava o enterro dos corpos espalhados em todos os lugares. Após as transferências dos doentes e crianças para os campos satélites e acampamentos médicos instalados pelos condados, utilizamos de equipamentos da Cavalaria para a abertura de grandes covas, numa extensão de 30 metros por quinze. No total, foram cinco delas, a saber: cinco mil corpos na primeira, cinco mil corpos na segunda, cinco mil corpos na terceira, mil e oitocentos na quarta e um número indeterminado na quinta.

Quanto às medidas adotadas pelo Major Roberts, cito uma delas, a transferência dos corpos entre os trucados e as covas. Os mortos foram depositados, um a um, pelos próprios membros da SS, sem antes, perfilados, receberem a devida reprimenda pela atrocidade que cometeram. A reação dos facínoras foi mais aterradora do que o encontro de tantas vidas ceifadas quando entramos em Belsen: nenhuma! Não havia qualquer lágrima, qualquer feição de arrependimento, de pesar, ou qualquer reação tida como natural diante de uma perda humana e irreversível. Reagiram como se datilografassem um ofício para qualquer seção ou o cumprissem missões rotineiras dentro de uma caserna ou repartição em tempos de paz.

Mesmo diante da voz firme e dura do Major, que assertivamente avisava-lhes: “Olhem! Olhem para isso! Olhem para o resultado de sua obediência cega ao seu líder!”, encontrávamos naqueles rostos a completa ausência de sensibilidade e ciência daquela tragédia produzida por eles mesmos. Agiam como se tivessem fabricado um automóvel ou apertado um parafuso. O oficial manteve-se firme, como são os grandes guerreiros ingleses, mas confesso, Exmo. Sr. Primeiro-Ministro, que a ação do führer fôra tão devastadora em termos de tolher-lhes o mínimo de humanidade e consciência moral numa espécie de lobotomia perpetrada há décadas que cheguei a sentir medo.

O mesmo pude presenciar na reação dos prefeitos das vilas do condado e outros funcionários públicos durante os funerais. Nenhum deles tinha a menor noção do que estavam a presenciar. Todos, pelo que me pareceu, não possuíam qualquer regramento ou critério que possibilitassem abalizar o resultado de sua obediência a um sistema movido à crueldade. Era como não se vissem ali. Pareceu-me, nesses instantes, de que jamais projetaram os desdobramentos daquilo que decidiam em seus gabinetes. Era como se uma nação inteira trabalhasse sobre um material inerte, não enxergavam em momento algum o fim precoce da vida, a interrupção de possibilidades.

Tal evidência calou fundo os membros tanto da Casa dos Lordes quanto da dos Comuns, que simplesmente, em silêncio, faziam suas anotações em seus cadernos e blocos de notas. Percebi que mergulhavam em seus registros manuscritos para não confrontarem a montanha de corpos que entupiam as covas. Aterrorizavam-se ao verem que as chamadas autoridades civis alemãs, ali presentes, olhavam aquilo e não identificavam aquele teatro funesto do aniquilamento como resultado de suas próprias insanidades no cumprimento dos deveres diários.

O sentimento e o valor da vida se perderam. Recebemos notícias, quando da fuga alemã em Leipzig, que os internos daquele campo foram trancados nos alojamentos e refeitórios para que se ateasse fogo nas instalações. Com o objetivo de não deixarem indícios que os condenassem a crimes de guerra, os porcos da SS confinaram milhares nesses prédios e praticamente os carbonizaram vivos! A insensibilidade provou-se tão gritante nesses últimos tempos, Exmo. Sr. Primeiro-Ministro, que uma atrocidade prevalece como um gesto trivial, como a eliminação de registros, por exemplo, que se tornem comprometedores.

Creio, Exmo. Sr. Primeiro-Ministro, que o mais assustador em todo esse cenário macabro é o ponto onde um ser humano pode chegar, considerar um crime muito maior para se livrar de outro na mesma magnitude sobre fundamentos débeis. Se nada justificou o que aconteceu nos campos de concentração, a motivação quando do recuo da SS em Leipzig nos mostra a completa aberração e perturbação psíquica que pode dominar o espírito que duvidamos nesse instante chamá-lo de humano.

Receio desaparecer desse mundo sem qualquer traço de resposta. Não acredito, um dia, entender o que se passa no íntimo de alguém. Posso, Exmo. Sr. Primeiro-Ministro, entender os motivos, quase sempre perfeitamente persuasivos e tremendamente convenientes a quem os emite. Contudo, os fundamentos sempre parecerão falsos, ou incompletos, ou parciais. Receio que deixe essa vida sem o feliz encontro daquilo que pudesse acalmar meu peito diante do inexplicável.

Não falar sobre uma doença não significa necessariamente que não se esteja em terapia. Não abordar um problema não significa que o ignoramos. Ater-se ao presente pode representar o mais ignóbil aborto de um bem maior futuro se não considerarmos como esse mesmo futuro nos enxergará a algumas décadas distantes desse agora. Recorrer ao mesmo tema, porque essa nos é a chaga corrente, sevicia a latência, o tempo de espera e de curso da cura. Tudo demanda tempo, Exmo. Sr. Primeiro-Ministro, e essa condução não exigiria, necessariamente, que o único tema de nosso chá fosse a morte enquanto a alta não nos é anunciada.

É de profunda simplicidade, Exmo. Sr. Primeiro-Ministro, encontrar no outro uma maneira que nos desagrada. E nela basear petições de princípio que nos auxiliem no descalabro de posturas desajustadas, ou que julgamos a mais precisa diante das circunstâncias estabelecidas para um determinado cenário. Os dois lados perdem. Calam-se a humanidade, o princípio de justiça, a tentativa de um êxito razoável, a oportunidade de saber o que vai no outro para que aja daquela forma. Tudo vira disputa, e o que deveria prevalecer resta à míngua. Tudo vira motivo de medo, o susto, o açodamento da calma pelo trauma da sustentabilidade da crença de que há complexidade em tudo, no gesto alheio e exógeno. Presume-se apenas, caro Sr. Primeiro-Ministro, de que um fato, ou elemento, seja de acordo com o que pensamos, ou apenas queremos ver. O que, de fato, se encerra nesse outro?

E toda essa mecânica não nos leva a canto algum. Impede que analisemos, de verdade, a nossa parcela quando tudo resulta em péssima solução.

Todavia, Exª., leva-se tempo para enterrarmos os mortos, muitos deles com uma nobre existência e relevância para várias famílias e pessoas. Executamos a missão de sepultá-los, Exª, mas sob a mais calcinante constatação de sequer sabermos seus nomes. Soube-se de que nasceram, mas jamais saberemos ao menos o dia e o horário de seus óbitos. Desapareceram, suas histórias e trajetórias se desintegraram. Suponho que esse não deva ser o melhor tema para qualquer tertúlia, um jantar ou um singelo encontro amoroso. Certamente, depois do sepultamento de cinco mil corpos, creio raro entre os praças tal ocorrência ser assunto preferido no rancho. Não evitamos a contabilidade dos mortos, Exª. Apenas tentamos seguir adiante sem insistentemente dividir nossas bandejas com o flagelo presente.

Às vezes, Exmo. Sr. Primeiro-Ministro, sobe-me o medo de ser como aqueles soldados da SS, os prefeitos e funcionários públicos alemães, de possuir algo muito semelhante ao que lhes impregna o espírito. Diante de tantas mortes, dos combatentes britânicos que não retornaram vivos aos seus lares, dos pobres internos dos campos de concentração que por lá ficaram, das órfãs crianças cujos destinos são incertos, fico em dúvida do quanto fiz e faço parte desse sistema que, para o meu coração, é uma fonte interminável de desgraça. Receio pouco orgulhar-me de comandar uma vitoriosa máquina-de-guerra, Exmo. Sr. Primeiro-Ministro. Não creio que derramamento de sangue seja a melhor das escolhas que se possa ter em vida. Restabelecer a paz nem sempre é promover justiça.

Ouso afirmar, Exmo. Sr. Primeiro-Ministro, que meu quinhão pode ser, num futuro distante ou não, pouco digno de condecoração. Entendo o reconhecimento pela minha bravura, mas não entenderia meu engenho como merecedor de eterna lembrança. Por isso, Caro Primeiro-Ministro, opto pelo silêncio de minha chaga simplesmente porque não quero dela fazer profissão-de-fé, assunto de orgulho, o louco que só fala de si, dos feitos de outrora, imperfeito para entender que os tempos futuros certamente serão de outra lavra.

O meu silêncio, Exmo. Sr. Primeiro-Ministro, não é o esquecimento da covardia, consciente ou não. É simplesmente a franca e mais sincera tentativa de receber meus netos em casa, n’algum dia, sobre outras premissas que não essas que tenho de suportar enquanto meu médico não anuncia a alta.

E que o caráter metafórico desse encerramento não seja interpretado como descompasso, insanidade ou descalabro, nem tampouco incute em qualquer alma a pilhéria desagradável do susto. Penso pouco funcional os relatos dessa correspondência serem assunto recorrente em momentos onde a paz, por mim, é desejada. Rogo que não seja tido como insensato por não querer para mim o destino de ser apenas lembrado por eles. Não os evitarei, Caro Primeiro-Ministro. Não mencioná-los não significa que os ignoro.

E faço minhas as palavras do grande escritor português Eça de Queiroz, ao final de sua carta ao editor de sua obra-prima O Mandarim:

“(...) Se estou contente? Não, senhor, resignado.”


Em Belsen, 1º de maior de 1945


General de Exército Evelyn Barker
OF-9 Comandante
VIII Corps
Pela 11ª Divisão Blindada
Belsen
Alemanha  

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