domingo, 15 de fevereiro de 2015

Imagens: Márcia Costa e Evandro Rota

Por Flávio Viegas Amoreira


Cedo demais em minha vida foi sempre. Desde esse sempre me estranhei com a realidade cotidiana, o tempo comum das coisas, a obviedade do horizonte pintado em cores primárias. Não me encaixo em nenhuma categoria: não fui um anjo torto, uma legião subversiva de semideuses entregou-me o mundo como paraíso avesso. Fui alfabetizado pela poesia: antes de ler já sentia sua possibilidade no medo, no profundo espanto e na sozinhez de todo mergulho: sou rente ao oceano. Nunca me acostumei com o sofrimento: ele me compactua de verdade com tudo e todos: nenhuma dor me é o alheio: meu amor é único, intransferível, rigoroso e dissoluto. No sofrimento a ontologia, a percepção do absurdo e a tentativa de ainda buscar algum nexo para o que chamam finalidade, sentido. Meu primeiro super-herói depois de Carlitos foi Gregor Samsa e a barata de Kafka: assim, contar o estranhamento foi por onde me safei da desistência e ordenei a loucura evidente em tudo. A hipersensibilidade é um dom e um fardo: nunca persegui, me rendo e acaso. Lá na adolescência, lendo Nietzsche, me identifiquei com a vontade do delírio: criei o grande personagem que me orienta: o Doutor Imponderável. Se tudo redundava em inútil que fazer com livre arbítrio? Entre o ato gratuito de Gide e o niilismo criativo, precisava saber onde achar-me perdendo-me. 

Só sei escrever: um poeta já nasce inútil para dirigir automóvel. Ter habilidade para desvencilhar-me de condicionamentos: a infância me parece até hoje a suprema opressão, a primeira juventude perda de tempo com passionalidades: cheguei à colina onde deparo com um passado que embalo sem me escravizar e a velhice só remota possibilidade. Só escrever importa, ser editado para compartilhar meu testemunho das nuvens e ondas, e prazer nenhum é maior que conhecer alguma gente que me dê conversa. Sei exatamente o que eu quero, sem precisar quanto e o modo: escrever e estar sozinho o suficiente é que definirão tudo. Não sei se cinismo defensivo, mas sinto esmerado em perdas: todo sucesso é saber suportar e nunca me deslocar do meu presente. Olho tudo de uma altura e distanciamento não forçados: ter maturidade é não criar expectativas: não descobri isso feito achado, é algo em que me largo e tudo dá certo porque se acontece eu me alegro. Tirando meus livros, poemas, músicas, filmes, toda arte que habito me purifica, todo resto é natural e engulo seco. Aborrecer-me é o extremo do tédio: esbravejar é sair de fora do que é essencial e só esbravejo para não entrarem em minha estranheza. Dói não ser compreendido? Seria demais ter ilusão de ser compreendido: se fosse eu me acomodava no consenso. A vida dum escritor “puro sangue”, dedicado totalmente a criar com prazeres indizíveis e agruras decorrentes do ofício, é muito semelhante a um monge: da mesma forma que as vidas comuns lá fora devem precisar das preces dum convento, imagino-me monge mundano: alguém precisa ouvir Scarlatti, Boulez e Keith Jarret, assistir várias vezes todos os Bergmans e Visconti, bem como fazer “arqueologia literária”: conhecer, revelar, cultivar poetas e romancistas esquecidos. Nunca imagine-me com 50 anos e me sinto integrado a meu centro vital como nunca também imaginaria: só eu sei quanto sou resistente com todo esse excesso de sensibilidade. Nasci sob a égide da Guerra Fria e a ditadura militar brasileira: um homem se faz basicamente em atmosfera até os quinze anos; cresci com temor de um conflito atômico planetário e a repressão política e comportamental. Quando o regime dos generais sucumbiu no Brasil e o Muro de Berlim punha fim à divisão ideológica do pós-guerra, uma sombra tão terrível irrompia: a pandemia de Aids. Foram três movimentos que me marcaram e moldaram: última fornada existencialista, forjei-me num movimento libertário pendular entre epicurismo desinibido e experimentalismo beatnik: não tenho crenças, só devoções. Ter um ideal de vida e não fazer concessões nem que para isso tenhamos que pagar o preço da solidão: a busca me torna indiferente a tudo sem desistir do sonho total: estar no mundo sem deixar-se contaminar dele. A Beleza e a gentileza dela comigo, a Literatura como expressão dessa Beleza me fazem algo assim como Aschenbach de “Morte em Veneza” de Thomas Mann e Blanche Dubois de Tennessee Williams. Liberto, sigo as veredas para o poema preciso, o conto justo, o romance plausível e o monólogo revelador: desnudo-me. Preciso explorar cada canto da jaula antes de ter certeza de que ela não é tão grande quanto minha vontade diante do universo. Para escrever, eu vivi. 

As dificuldades amorosas, os impedimentos sexuais, ainda o sonho socialista, ainda lembrando os que tombaram por preconceitos e pela Aids, ainda esperando que a humanidade tenha alguns séculos de sobrevivência: é tudo tão visível e miraculoso....

Algumas epígrafes me acompanham faróis e reproduzo a que significa tudo que pretendo seja a missão dum artista da palavra...

(..) agora eu sei, Costia, agora eu compreendo que o essencial em nossa profissão – tanto faz que seja no palco ou na literatura – o essencial não é a glória, nem a fama, nem nada daquilo com que eu sonhava, e sim saber agüentar com paciência... saber carregar a cruz e ter fé. Eu tenho fé, e já não sofro tanto; e quando penso em minha vocação, não tenho medo da vida.

Trecho de “A Gaivota”, de Tchéchov, traduzido por Barbara Heliodora que usei faz muitos anos atrás na abertura da reunião de poemas “A Biblioteca Submergida”.Vou seguir contando esse meio século: é dever do poeta expor arcabouços de suas metáforas e sinto a fortuna de testemunhar que vale a pena o sacrifício de renunciar a tanto para conquistar o inumerável da literatura. 

Hoje, tenho muito o que fazer;
devo matar a memória até o fim.
Minha alma vai ter de virar pedra.
Terei de reaprender a viver.

Diz o poema de Anna Akhmátova. 
A memória renasce de Shiva e do que fui uma flor se esgueira pela pedras que removi para dizer a vocês o escritor que construí para mim..... Não se engana aos cinqüenta...

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