quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

Por Manoel Herzog 



O que pretendem no seu microuniverso, o Hermeneuta Noviço, o Demiurgo e Denise? Quem é Mnemonise? Deus? 
Essas perguntas parecem encerrar o mistério deste Uma Denise, segundo da trilogia de Roberto Amaral, e também o do livro antecessor, Le Mot Juste (2011). É fundamental, todavia, o mergulho prévio no universo borgeano para compreensão da história. Quase que tudo se contém na epígrafe d’ O Aleph, citação de Shakespeare:

O God, I could be bounded in a nutshell and
count myself a King of infinite space.
Hamlet, II, 2

Da minha concha sou o rei da grandeza do Universo. No microcosmo que este Uma Denise, segundo romance da trilogia, encerra, encontra-se o macrocosmo, o Universo. É assim que a partir do ponto de tensão criado com a anotação de um nome na contracapa de um livro e às marcas de um sublinhado que a misteriosa leitora, Denise, deixa num volume das Ficções, de Jorge Luis Borges, outro leitor, o Hermeneuta Noviço, busca trazê-la à realidade, materializá-la, como fosse ela criação de uma criação, fruto do livro, filha de Borges por vias transversas. Deste leitor fascinado pela obra de Borges que encontra um contraponto feminino também fascinado pelo escritor, se passa a um insólito diálogo entre essas três figuras: o próprio Hermeneuta Noviço, que lê a obra de segunda mão; a mulher misteriosa, anterior leitora, Denise, que sublinha o texto; o Demiurgo, o escritor, que reside simultaneamente nos corpos do próprio Borges e do Roberto Amaral personagem, que opera, provocado que é pela fé do leitor, o milagre de trazer Denise à vida.
O argumento de que cada leitor recria a obra é aqui revisitado e enriquecido. Temos como certo, dos anos de leitura aplicada e tentativas, bem sucedidas ou frustradas, de escrever, que o autor, uma vez lançada a obra, não mais a possui. E que cada leitor que lê a requalifica e ainda que depois de tantos anos ela passa a ter interpretações que o próprio autor jamais imaginou. Temos que a obra transcende o autor. Propor essa discussão filosófica a partir de um texto de Borges é bastante oportuno, na medida em que este autor, também ele, um leitor aplicado, buscou reinventar, por exemplo, o Quixote, de Cervantes, através de seu Pierre Menard, protagonista de uma curiosa recriação da obra que era seu texto ipsis litteris.  O exercício de Erre Amaral reverencia a tentativa de Borges, colocando-o no panteão onde outrora ele próprio constelou Cervantes. E assim a Literatura se constrói, do referencial que os antigos necessariamente representam aos novos.
Há um outro aspecto de suma grandeza na proposição do Roberto Amaral – o fracionamento do ego. Tão bem experimentado por Pessoa, entre outros autores, o tal fracionamento. Aqui neste romance se faz notar que são as personagens, desmembramentos de uma única mente, só não se sabe se do autor, se de Borges, se de uma personagem primordial. Na bela canção de Silvio Rodríguez, Pequeña Serenata Diurna, ironizando o poeta, conta que vive feliz, a despeito das injustiças de seu país, pois tem uma mulher clara, etc. Vamos à letra:
Pequeña Serenata Diurna
Vivo en un país libre
cual solamente puede ser libre
en esta tierra, en este instante
yo soy feliz porque soy gigante.
Amo a una mujer clara
que amo y me ama
sin pedir nada
o casi nada,
que no es lo mismo
pero es igual...


Finaliza pedindo que os mortos o perdoem por tamanha felicidade.

Y si esto fuera poco,
tengo mis cantos
que poco a poco
muelo y rehago
habitando el tiempo,
como le cuadra
a un hombre despierto.
Soy feliz,
soy un hombre feliz,
y quiero que me perdonen
por este día
los muertos de mi felicidad.

Roberto Amaral, criador de Uma Denise, obra que será lançada neste sábado em Belo Horizonte

Há uma ironia, qualquer mentira na felicidade do pequeno burguês que, distanciado da verdadeira poesia, vive a vida pragmática e se contenta com a pequenez de uma propriedade e de uma família, pouco importando o coletivo. Esse cínico poeta sustenta um conceito de que algo "não é o mesmo, porém é igual".
Pra lá do cinismo e da ironia que o cancioneiro propõe, num universo verdadeiramente poético o Eu se desdobra em vários e, assim, é igual – todos são um,  mas não o mesmo. 
O Hermeneuta, Denise e o Demiurgo são tripartições da uma figura central, e assim o autor projeta o alterego feminino, um princípio de Ísis ou de Virgem Maria, coloca-se na posição de humilde leitor de um mestre e se coloca, em movimento emulatório, na posição do próprio mestre – Borges. Feito Pierre Menard que emula Cervantes e se arroga à autoria da obra deste, Jorge Luis Borges, um homônimo, aqui neste Uma Denise, adotou o pseudônimo Roberto Amaral, para se poder distanciar do mestre e paradigma.

Claro, faço aqui apenas uma brincadeira entre ficção e realidade. Eu não sou o Hermeneuta Noviço. Sou o Roberto Amaral, aliás, sou o Borges! E você é... simplesmente... a Denise. 
Na realidade, Denise, penso que a presença de Borges em meu romance é menos como personagem ou como narrador, ele é muito mais o leimotiv da narrativa. 

Na penúltima parte do romance, aquela em que a verve se faz livre e se experimentam os trechos mais saborosos da narrativa, Borges/Amaral começa a rezar as contas de um rosário de mulheres, as que experimentou em sua vida de personagem, e então se justifica a Denise do livro, criatura compósita, junção dessas experiências com o feminino, a mulher interna do narrador. E é este, por fim, o milagre que o Demiurgo opera, pela fé do Hermeneuta: traz Denise à realidade palpável. O velho, com as mãos entrecruzadas no cabo da bengala, realiza a operação mágica da Literatura, e Denise, brotada das pistas que deixou no livro, se materializa.

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