quarta-feira, 3 de dezembro de 2014


obra de Aigars Zalkalns


Marco Aurélio Cremasco


Piolho, o engraxate, liso que nem graxa. Após conhecer os segredos do pessoal, joga futebol. No fim da pelada, abraçado à pelota, confidencia-lhe maroto as emoções dos moradores de São Sebastião do Guayrá. – Dona Lica criava galinhas. Ensinadas, não botavam ovos de ouro. Os abacates eram vacas; as goiabas, cabras. A fazenda, maior do mundo, cabia no quintal da vizinha. Chovia. No meio-fio, Zoza lançava barquinhos de papel. Caravelas carregavam marujos de feijão e sempre sobreviviam aos naufrágios. Dada ocasião, Dado Pisca-Pisca parou para admirar um joão-bobo. Os guris insistiam atirar pedras naquele pássaro, que não arredava asas do ninho. Dado aprendeu algo com aquele João. Certa vez, Pardal topou com o burro que puxava a carroça do leiteiro. Foi ao chão. O homem troçou e o burro quis ajudar. Com aquela tralha toda, como haveria? O vira-lata seguia o Biela com olhar míope e meigo. – É, os cachorros têm os olhos tristes de meu avô. Julinho foi pra capital. Capital? Nunca ouvira falar desse sítio; devia ser pra lá dos japoneses. Dona Lila lia vida, lia morte. Só não lia a própria sorte. O seu Perna Pedreiro era assim chamado por andar no modo de alicate, engraçado como fosse subir escadas... e a molecada atrás, arremedando-lhe o jeito de andar. Vicente Vaqueiro? Boca de litro, mula sem freios. Bastava caninha pra baixar espírito. Tiros a torto e a direito. Acabou esfaqueado pelo Zé Nervoso no circo de rodeio. Deixou mulher, duas amantes, doze filhos, e virou moda de violeiro. No velório do Rosca distribuíram chá, bolacha e batatinha. Parecia festa. Até o defunto sorria. O padeiro? Nossa!, era louco pela mulher do coveiro. Grandalhão, olhos esbugalhados, voz cavernosa, babava sem parar. Naquele dia, por volta das seis da tarde, entrou na casa do coveiro, ficou quietinho no cafofo em que a dona coveira guardava as tranqueiras dela... enfim se declarou. – Vem comiiiigo! Dizem que ela morreu do coração em dúvida se era amor ou assombração. Dita Estrela, em noite de lua cheia, vestia-se de moço e passeava pela vila. Falavam que era meio maluca. Vai ver, ela era, mesmo, o são Jorge. Havia dias, pescando às margens do Pacu, Piolho refletia o futuro. Aqueles morros... A estrada esburacada dando caminho à colheita de algodão. Será que o futuro viria disfarçado de piche aterrando tudo aquilo? O peixe fisgado na ponta da vara queria responder, mas estava com a boca ocupada. E nesta noite em que as nuvens encobrem o luar, Piolho enovela-se e sai à rua montado em um cabo de vassoura. Cavalga na chuva e a enxurrada carreia nada mais do que palitos de fósforo. Corre atrelado ao tempo, que refuga o que se pode sentir e não mais recuperar. O chão batido. O barro. O estrume de cavalo, de gado. Tudo revolvido que se transforma em asfalto, que denuncia. – Acorde. Piolho, o engraxate, deixa de ouvir o carro de boi e repousa o olhar úmido no banco da lembrança. Não descansa como devia. Deve flores ao jardim da chuva. Vive das gotas. A vida assim nos apavora? – pergunta-se. A descoberta nos assola? – insiste. Não sabe, nunca soube e jamais saberá. A graxa é o que resta de orvalho sobre as pétalas das flores.

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