quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

Menina Sentada (Portinari)
Por Marco Aurélio Cremasco

Tomei chá de hortelã a vida inteira. Talvez por isso sou calma e meio tonta. Quietinha e de olhos abertos, feito faróis que penetram mentes obscuras, vasculhando segredos. No primeiro tombo, chorei. Engatinhei à porta, descobri o sol. Quando me pus em pé passei a assuntar coisas proibidas que, aqui, atrevo revelar. – No meio da procissão de são Sebastião deu um dez no Zé Marceneiro. Atravessou a multidão e desandou a tirar as flechas da estátua do santo, encravando-as no peito. Dessa maneira ocorria em dias consagrados: no de são Lourenço, lá se via o Zé ateando-se fogo; no de santo Antônio, lançava-se em espinheiro... até que se cansou dos santos e resolveu andar pelado, cantarolando feito o Gabriel. Cido Lixeiro bebia bem e como ninguém. Certa madrugada bebeu tanto que, ao acordar, passou a falar estrangeiro. Uns diziam ser alemão; outros, francês. Bastou a dona Fuxiqueira espalhar que era coisa de alma e todos passaram a respeitá-lo. A partir de então o convidavam para uma pinguinha; era espírito de médico, de advogado, era sei lá o quê, pois a cada cachaça um espírito diferente dele se apossava, passava a aconselhar e, contam, a fazer milagrinhos despretensiosos, como o de resolver paixões mal resolvidas. Socorro Feirante desgostava do nome, principalmente quando a molecada esgoelava. – Socorro! Socorro! Ficava furiosa, enquanto tomates, ovos, voavam, colorindo as calçadas do Caminho de São Tomé. Carminha Lavadeira circulava, sem rumo nem prumo, carregando uma trouxa na ponta de uma vara. Sorria para os guris, pois cantavam. – Carmem, Carminha, o que traz na trouxinha? Ela mostrou para mim: vestido de cetim com estrelinhas que, ao fugirem do céu, ali se punham para dormir. Nico foi soterrado no vendaval de outubro. Via-se, somente, o branquinho dos olhos e os bracinhos para fora da terra acenando a uma borboleta, a qual, em seu último suspiro, acreditava ser o Rafael. Pode parecer estranho, mas eu tinha medo da Celeste, a dona da quitanda. Um dia, distraída, entrei em um corredor escuro, pavoroso, e dei de cara com uma mulher enorme; pés mergulhados em bacia de água (com quiboa) e cigarro de palha no canto da boca. Virou-se para mim, revelando uma verruga na ponta do nariz. – O que quer, guria? Trêmula de susto, emendei. – Bala Sete Belo! Foi o bastante para eu desviar o caminho e assim ganhar doces e o sorriso solitário da quitandeira. Dita Boba andava de branco. Vestido com rendas e babadinhos nos punhos, pronta para qualquer casamento. Usava fitinhas no cabelo. Era do meu tamanho e bastante velhinha. A criançada, inclusive eu, caçoava. – Dita Boba! Dita Boba! Ficava brava e corria atrás da gente. – Sou boba não! Sou boba não! Certa vez eu caí... ela se aproximou e me levou para a sua casa: pequenina como ela e recheada de flores, como ela. Daquele dia em diante, passei a usar vestido com babadinhos. Trago fitinhas azuis no olhar e, às vezes, uso como perfume as lágrimas de dona Benedita. Sou meio tonta, sabe? Chegou a derradeira lembrança. Balanço-me nesta cadeira e ouço a carroça carregando horas. – Padeeeeeiro! Ó o leeeeiteee! Vejo o olhar desconfiado da tristeza e o sorriso da esperança. Sinto a fragrância de rosas vermelhas e o cheiro de hortelã.

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