sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

Obra de Beatrice Hoffman

O inclassificável “cabeça de José” de Patrícia Galleli
Por Erre Amaral


Um dos primeiros escritores a pensar sobre a arte do romance foi o inglês Henry Fielding. Para não ver seus relatos confundidos com narrativas que julgava de gosto duvidoso e que arrogavam para si o nome de novel ou romance, resolveu adotar uma epíteto curioso para a sua obra literária: relato prosai-comi-épico.
Com isso, Fielding buscava dar a real dimensão do alcance ansiado por uma narrativa romanesca, nada mais nada menos que alimentar a nós, leitores, com uma matéria fartamente conhecida, mas talvez não percebida em sua inteireza, em razão de nossa cegueira de tanto vivenciá-la: a nossa humana condição.
E qual a melhor forma de traduzir tal matéria senão por um relato que é a um tempo prosaico (uma linguagem não versificada, reveladora do aspecto trivial, comezinho, ordinário da vida), cômico (a ironia que se manifesta no risível cotidiano da existência) e épico (a  glória alcançada mediante modestos gestos e atitudes)?
Na tentativa, sempre malograda, de tentar classificar o cabeça de José da escritora catarinense Patrícia Galelli foi essa a melhor aproximação que alcancei: trata-se de um relato prosai-comi-épico.

São doze pequenos capítulos de uma narrativa curta, adensada, irônica, que bem poderiam ser também doze pequenos contos, posto que cada capítulo tem um título, e não está fora de questão pensar que bem poderiam ser doze poemas em prosa, com um insistente protagonista que se faz notar apenas por uma incansável cabeça obsessivamente classificatória e classificadora, habitante da (im) provável Paradoxo:
“na cabeça de José correm dois rios sem sentido. Ele mora em Paradoxo.”
“o que as pessoas não sabem é que José tem um aquário no quarto,
com peixes pequenos.
brancos.
Vermelhos.


: peixes que nadam até a superfície e tomam velocidade para chegar ao fundo.
: peixes que batem a cara de peixe nos pedregulhos e se espatifam.
: peixes que viram tintam que faz desenhos na água.”
A obsessão analítica e taxonômica de José faz dele um personagem vinculado a um imaginário absurdamente diurno, cujo heroísmo está em sua ânsia de controlar e dominar as coisas e as pessoas mediante um ativismo puramente mental, cerebral, esmiuçador da mais ínfima realidade, qual fosse um anacrônico Descartes:
“: no mapa da mente, em espiral ou envidraçado, José faz filtragem
de mundo-nítido-desenha uma utopia fria no rastro do mapa
dos neurotransmissores.”
Este José está bem distanciado do tipo fundador José do Egito, pois não sonha, não profetiza, não sai do chão, não busca o Alto.Demasiado analítico, quer dominar o mundo desde seu mais recôndito espaço:
“se os cientistas fossem capazes de reunir numa só figura os hemisférios
norte e sul do planeta e os hemisférios esquerdo e direito do cérebro,
a chance de encontrarem José seria exatamente de cem em uma.”
A quase-trama de cabeça de José aproxima-o dos relatos antilíricos de Robert Musil, de Hermann Broch, de WitoldGombrovicz, mas, muito especialmente, de Franz Kafka: a claustrofobia de habitar um mundo fechado em aquário, a sensação arrepiante de estar sempre sendo observado desde um angustiante panóptico, a condição titeresca dos personagens sendo manipuladas por um ardiloso pantomímico. E nisso cabeça de José é luxuosamente auxiliado pelo claro/escuro no que resulta a bela conjunção de texto e ilustração.
“gotas e gotas de insuficiência social evaporam e formam nuvens
de pequenos desesperos presos em si mesmos. no alto da estratosfera,
onde tudo é mais estável, um desespero dos mais corajosos dá discurso
em surto.”
A segunda epígrafe do relato prosai-comi-épico da Patrícia é o primeiro verso do poema José de Drummond: “E agora, José?”, ao meu ver um engodo para o leitor, pois trata-se de uma falsa prolepse, já que a autora, muito sorrateiramente, não dialoga com o poema, apresentando-nos um outro José, não o do “Você que é sem nome” de uma Minas que não há mais, mas o “José sem sobrenome” de um mundo que é mais que nunca.

Erre Amaral. Escritor. Autor de Le mot juste (romance, Orobó Edições, 2011) e uma denise (romance, Editora Cousa, 2014). Assina a coluna “O mal-entendido universal” na Germina Literatura e Arte (http://www.germinaliteratura.com.br/). Edita a Palávoraz – Literatura e Afins (http://www.youblisher.com/p/941335-REVISTA-PALAVORAZ-EDICAO-02/). Coordena o Projeto de Extensão Café Literário (http://site.ufvjm.edu.br/cafeliterario/) em Diamantina-MG. Despacha no blog piERREmenardiando (http://pierremenardiando.blogspot.com.br/).

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