sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

Vase of white carnations and rose and bottle, de Van Gogh 

Adri Aleixo, a poeta dos espaços exíguos 

Por Erre Amaral

Ao contrário do heroísmo pelo qual anseia certos versos épicos,
1.armados que estão com o gládio para separar as trevas da claridade, o mal do bem,
2.e firmados no cetro, com cuja aríete, anseiam pelo domínio do caos terreno,
3.indicando o alto, o tempo sem tempo, o cosmos da eternidade,
4.desde um agigantar-se com olhos perscrutadores para onde quer que se estenda o seu domínio,
há outros que,
ao contrário,
·         nada querem dominar:
“Vestida de chuva
e plena de encantos
eu disse apenas:
me pegue e me leve
para um desses seus
poemas.”

·         nada querem separar :
“Eu moraria em seus lábios
feito céu
açúcar e sol.”

·         não buscam o aprisionamento via a circunscrição, mas a penetração de um centro:
“Cruzei mares
mas me encontro
no regato dos seus olhos.”

·         não querem ascender aos céus, e sim, pousar delicadamente na terra:

“Não quero nuvens
meu tempo agora é chão.”

“Meus pés querem céu
meu corpo, um canto ribeirinho.
Se volto, é porque um astro
me prende ao chão.”

·         não querem sondar o éter, mas escavar com frágeis e caprichosas mãos o que a terra dá e não:
“A lua está deitada na rua
o solo revolve húmus
ímpetos eflúvios
sussurra nossa poesia.”

Eis os versos que encetam alvos móveis, os de uma certa poeta, uma, mineira, uma Adri, a Aleixo, encapsulados em seu auspicioso: des.caminhos, da editora cujos livros são patuás
[que, para além de espantar o mau olhado, função menor, corriqueira, está aí para nos proteger contra a esterilidade literária].
Os versos de Adri são, dessa forma, versos que a incluem entre as poetas de um imaginário noturno, pois, avessos a um enfrentamento heroico e metafísico à inexorabilidade do tempo e à ceifa da morte, buscam, sim, apaziguá-las, domesticá-las, desde um redobramento eufemizante da linguagem poética, conduzindo à desaprendizagem do medo:

“Na ida todo santo ajuda
mas na volta
houve tanto alumbramento
tanta iluminura.
Coisa de rir de sonhar.”

O mais impressionante nos versos de Adri é certo fenômeno proporcionado por encaixes sucessivos de metáforas e símbolos, culminando num processo que poderíamos chamar de gulliverização, ou seja, na inversão do gigantismo semântico que os seres e coisas possuem, adensada e involuída da maior para a menor das bonecas russas:
“Venho agora de um jardim
Rosa Acácia Dália
Só os liquens me vicejam.”

“Estou vendo as coisas
de dentro de uma lágrima”

“sinto os acordes da boiada
que se rege de mim.”

“deixando essa felpa cá no peito a moer.”

“Nesta hora, esse leito sou eu
é você
é o mundo inteiro.”

“chega pingar
entre o indicador e o polegar.”

“A palavra ficou perdida
dentro da boca
adornando céu
dentes
língua.”

“Apaixonou-se pelo mar
mas como esquecer
o rio, o regato
e a enseada?”

“Apesar da persiana
a luz do pirilampo
ainda me salva.”

“Mas às vezes penso
que só inverti os sentimentos
nas algibeiras.”

“Não te penso grande
Príncipe no cavalo branco
Mas em meus espaços exíguos.”

O processo de gulliverização é revelador de um gracioso mito que repercute com várias feições: o de que a força encontra-se na fraqueza, o de que a melhor fragrância encontra-se nos menores frascos, a matéria- prima dos alquimistas, o Aleph borgeano, em cuja diminuta partícula encontra-se todo o universo.

Outro fenômeno que compõe os versos de des.caminhos é o da queda convertida em descida: do dorido e mortal voo de Ìcaro ao mergulho lento na intimidade da terra, na intimidade do corpo. Uma lentidão visceral, térmica, suave, em continentes sempre receptivos:

a taça que anseia ser inundada pelo verter do vinho
o peixe que mergulha direito na turva água
a vagina que anseia pelo penetração pastosa do pênis
:

“e os pés cheios de inundação.
Há um rio que me atravessa.”

“A pétala sabe, levemente quando cai
que seu destino é ser porto
do solo que a espera.”

“O antúrio sempre me cumprimenta à porta.”

“De repente você vem
me irrompe em fúria
me alaga em púrpuras.”

“Tire sua roupa e leia este poema
você tirou os seus sapatos para empinar a pipa
Para que servem as máscaras?
você me conhece nua
você me sabe crua

Não deixe que sua fúria dure mais que o tempo de um gozo
lembro de você arrancando a flor e picotando o talo
não deixe amarelar as palavras como se amarelam as flores”

“Ele inaugura linguagens
no percurso do meu corpo
língua
morfemas
cartografias
e eu sou toda epifanias.”

“Sua língua, minha carne
Tua veia, meu sangue quente
Nossos flancos, um tango.”

“No chão, as estrelas que colhemos
têm outros nomes:
rosas, margaridas e calêndulas.”

“Seu corpo, meu latifúndio.
E a pressa em me perder.”

Mas que ninguém se iluda com a possibilidade de tal feminilidade noturna, sempre receptiva à intimidade, à penetração, venha, quando provocada em seus brios, se transformar na mãe, a mais terrível:

“Fui me desconhecendo a partir do que falavam
ora pétala
ora erva
Entre bem dita e maldita
abortei todos.”


Erre Amaral. Escritor. Autor de Le mot juste (romance, Orobó Edições, 2011) e uma denise (romance, Editora Cousa, 2014). Assina a coluna “O mal-entendido universal” na Germina Literatura e Arte (http://www.germinaliteratura.com.br/). Edita a Palávoraz – Literatura e Afins (http://www.youblisher.com/p/941335-REVISTA-PALAVORAZ-EDICAO-02/). Coordena o Projeto de Extensão Café Literário (http://site.ufvjm.edu.br/cafeliterario/) em Diamantina-MG. Despacha no blog piERREmenardiando (http://pierremenardiando.blogspot.com.br/). 

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