domingo, 7 de dezembro de 2014


 Um conto, por Luiz A. G. Cancello



[Imagem de Cláudio Tozzi]



     João combinou um encontro com o amigo no bar da esquina, numa quarta-feira, para ver o jogo Santos versus Atlético Mineiro. É um boteco com mesas na calçada; nessas noites de chuva e frio há uma cobertura de plástico, uma espécie de tenda, onde ficam os fregueses. O dono colocou no balcão duas televisões, ao menos uma delas visível de qualquer mesa. Ali ficaram, aguardando o início do espetáculo, abrigados do inverno e da garoa.

Não via o companheiro havia algum tempo. Começaram com as trivialidades, filhos, famílias, governo, futebol. Esperava uma oportunidade para contar-lhe uma experiência inusitada, um estranho fato que tinha lhe sucedido, mas não achava a brecha. Marinho é um pouco mais novo, também militante de esquerda. Sempre estiveram juntos nas campanhas políticas e nos bares da vida onde havia ocasião de “trocar uma ideia” e arranjar soluções infalíveis para os problemas do país.

João pediu um Campari. O garçom foi até o balcão, entrou na copa e voltou com a notícia: "Não tem". "Como, não tem Campari?!", respondeu indignado, pronto para levantar-se.

Logo mudou de ideia, o jogo ia começar, queria ver a partida desde o pontapé inicial. Pediu um whisky sem gelo e uma garrafa d'água. Gostava de alternar um gole de cada, a sensação quente do álcool queimando a garganta, o frescor da água dando o contraste. O amigo pediu chope e um sanduíche de filé de frango.

Vai e volta o garçom: "Não tem frango".

Nova indignação, a bola já rolando, não iam sair dali àquela hora, de jeito algum. O mais novo atacou: "Tem ferrinho?" "Que ferrinho?", respondeu o homem. "Aquele ferrinho de baixar a porta". A piada poderia causar confusão, mas só provocou um sorriso meio sem graça nos presentes. “Os turistas vieram em massa no final de semana e acabaram tudo”, desculpou-se o garçom. "Deixa pra lá, vai um sanduíche de calabresa, mas corta a lingüiça em rodelas, põe cebola e frita com queijo", tentou o mais velho, conciliador. “Pra mim também”, emendou o outro. O pedido era bastante detalhado para aquele lugar, a encomenda demorou até meados do primeiro tempo, mas veio correta.

Logo de cara o Atlético enfiou dois gols no time da casa. João comunicou à namorada, falando baixinho pelo celular, a notícia da derrota antecipada; a paixão é assim, qualquer coisa é pretexto para o sussurro. "A vida é como o futebol", filosofou de repente o Marinho, explicando: "Tudo pode acontecer de uma hora para outra, o Santos pode empatar, mesmo que não esteja atuando melhor. É o único jogo que pode ser decidido em uns poucos ataques, ao contrário dos outros, onde quem ataca mais sempre ganha".

O amigo entendeu que ele se referia ao vôlei e ao basquete, talvez nem concordasse com essas considerações, a maior experiência de vida o ensinara que as coisas não cabem em tais esquemas simplistas, mas não retrucou. Pensando bem, até que ideia era boa. De fato, tudo pode acontecer sem que se espere.

Estava ali para contar algumas experiências recentes, queria falar dela, da nova mulher, e de como havia sentido, pela primeira vez em muitos anos, possivelmente pela primeira vez em sua existência, a proximidade de Deus. Não achava jeito - como falar dessas coisas para um comunista?

Começou a alinhavar a história, ela aconteceu como um gol no único ataque do time, o drible genial, o lance que decide a partida. Na metade do segundo tempo, chegou a pensar, afinal já passava dos 60, mas omitiu esse pedaço, evitava pensar nisso. Não era tão metida a intelectual como eles, muitas vezes as metáforas cruéis que usavam para ironizar a vida feriam sua sensibilidade. Cultivava mais a estética, por força de ser ligada à arte, e a percepção interna, por sua natureza.

"É muito rico conviver com uma pessoa que se orienta por outros sentidos", explicou. "É de esquerda?" perguntou o outro, meio desconfiado. "Votou na esquerda nas últimas eleições". A resposta pareceu aquietá-lo, mas esse pingue-pongue acabou chutando o tema transcendental para escanteio.

Gol do Santos, urros no bar, "Eu não disse?", ouviu João ao seu lado, como se a jogada justificasse a postulação filosófica posta na mesa, junto ao sanduíche. Em seguida veio o empate. Mais gritos, mais chopes e cervejas, o ambiente não parecia mesmo propício aos assuntos sentimentais.

Telefonou de novo, ouviu o que queria: "Queria estar aí com você". Ele também gostaria que isso fosse possível, mas ela trabalharia muito cedo no dia seguinte, precisava dormir, é bem verdade que ele não dava sossego, é bem verdade que ela parecia não se importar. Agora já mandava às favas a conta do celular. Conversaram mais um pouco, disse-lhe onde estava, falou mais baixo ainda algumas palavras meladas, sob os olhares gozadores do amigo, que deduziu o clima que rolava, pelo tom assoprado do papo.

Desligou o aparelho e seguiu com os assuntos triviais, entremeados de comentários sobre o jogo, como se nada tivesse acontecido.

Foi uma coisa tão simples, seria fácil contar o caso completo, acontecera havia um mês. Ele estava na casa dela, já pronto para voltar ao seu apartamento, ali perto do boteco, mas o time da casa marcava, agora, mais um gol, 3x2 para nós, cantos de vitória aos berros, brindes, balbúrdia, interrompendo o ensaio do discurso.

Bem, estava na porta da casa da namorada, a instantes de partir, beijos e abraços, ela disse: "Vai com Deus".

Ele respondeu: "Fica com Deus".

Por um instante ficou paralisado, perplexo, aquela expressão era estranha ao seu costume, havia se formado de maneira autônoma, teve a sensação de alguém ter falado por sua boca, como se estivesse possuído. No entanto a voz saiu convicta, era mesmo sua, há muito não sentia palavras tão verdadeiras, rogou que ela ficasse com Ele, talvez o contrário fosse mais apropriado, Ele com ela.

Achou mesmo que quis dizer isso, por vezes a ordem dos fatores altera o produto. Enquanto recordava toda a cena e procurava um modo de contá-la ao amigo, e já não considerava essa tarefa tão simples, o Atlético empatou o jogo. Xingamentos, socos nas mesas, torcedores se levantavam e abriam os braços, decepcionados. "Eu não disse?" Era o Marinho, tentando mais uma vez confirmar sua tese sobre a vida. João ficou meio sem jeito, também torcia para o time da cidade, formou-se um ambiente ainda mais complicado para se falar de Deus.

Perguntou a si mesmo se deveria estar ali, numa noite fria e chuviscosa, naquela atmosfera profana e ensurdecedora, a voz do locutor misturada à gritaria dos fregueses, alguns narizes fungando como contraponto, o sereno invadia a tenda de plástico.

"Vamos comer batata frita?", perguntou o mais novo. João olhou para o cronômetro da tela da TV, ainda faltavam uns 15 minutos para acabar o jogo. Concordou com o pedido, apesar da previsível demora do cozinheiro. Ficou com vontade de convidar a namorada para dividir o prato com eles, virtualmente, é claro, mas não ligou de novo, agora já deveria estar dormindo.

O resultado ficou no empate, os atletas pareciam conformados, trocavam a bola burocraticamente, enquanto o prato de batatas e o jogo eram esvaziados. Final do espetáculo, todo mundo se levantando e pedindo a conta ao mesmo tempo, o Marinho quis pagar: "Da última vez foi você", e encerrou o assunto. Esperaram o troco, o tempo exato para falar as coisas que foram esquecidas durante a partida, como se fosse um tempo extra, palavras de fim de festa, a saideira. João queria o desempate, mas ficou devendo o gol, não falou de seu encontro com Ele. Deixou escapar a jogada genial. Talvez consiga de uma próxima vez.

Andam juntos um pedaço do caminho de volta, debaixo da garoa. O burburinho do bar vai se distanciando. Pouco falam, separam-se duas quadras adiante com o aperto de mão, os rumos de casa se bifurcam. Sozinho, o homem retoma o contato com Ele e com ela, cada um presente à sua maneira. As ruas estão escuras, o caminho pode ser perigoso, a umidade gruda a camisa no corpo.

Chega em casa com um leve desconforto. Deita-se e fica rolando na cama. Com quantos tempos, afinal, se faz um jogo, pergunta-lhe a insônia. As coisas devem ter um fim, sopra-lhe um bom senso antigo, mas a noite dá sinal de ser longa. Depois de muitos anos faz uma prece, pedindo ao Juiz para soar o apito final. O final dos tempos, murmura e surpreende-se, antes de ser assaltado por outros sonhos.






Luiz A.G. Cancello é psicólogo formado pela Universidade Católica de Campinas. Foi psicólogo do elenco profissional do Santos Futebol Clube. Exerce a profissão de psicoterapeuta em consultório particular desde 1972. É também músico profissional. Publicou, entre outros os livros de contos Dias de cão (Realejo, 2007), A carne e o sonho (Bom Texto, 2000), Dia-a-dia: fragmentos (Massao Ohno, 1995). Mais textos seus podem ser encontrado no seu site: http://www.luizcancello.psc.br/ .

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