terça-feira, 28 de outubro de 2014


Lobo Branco (arte naif - acrílica sobre cartão) de Alan Lopes

Por Marco Cremasco


Demorou para andar. Falar?, muito depois. Quase não saíamos, pois toda vez era um desconforto: as pessoas encaravam-no, vendo nele um ser de outro planeta. Chamava atenção por onde passava. Caso alguma criança se achegava, a mãe dessa criança logo impedia a aproximação, desdenhando.– Pode ser contagioso, filhinha. Frequentou diversas escolas e os responsáveis apareciam com a pérola.– Sinto muito, não estamos preparados para receber o seu filho. O mundo não está preparado para o meu filho, isso sim, a começar pelo nascimento cercado de hipocrisia disfarçada de ternura, feito a primeira vez do banho acompanhado de um pensamento irônico.– Tão bonitinho que até parece um cachorrinho. E os cachorros sempre foram a paixão do meu menino. Os únicos que o aceitam; é como se Deus fizesse dos cães anjos da guarda para os rejeitados. Como se os cães O glorificassem em latidos e aos seres humanos bastassem ossos de intolerância. Depois de tanta procura. Depois de remexer na escória de nossas entranhas, estampada na hipocrisia do discurso, encontrei uma escola que o aceitasse. Ainda assim um ou outro o apontava, qual ferida a ser encoberta por esparadrapo. Rejeitaram-no, inclusive na oportunidade de encenar a Gata Borralheira. Obviamente não havia papel para ele e sequer a mágica de transformá-lo em príncipe encantado ou, quiçá, em árvore ou a mandrágora sob essa árvore.– Posso ser um cachorro, tia – sugeriu – e nem preciso de máscara. Está bem – concordou a professora.– Assim que o sapatinho couber no pé da Borralheira, você late, discreto, de felicidade. Felicidade? Como encontrá-la em seres execrados? Nele, estava a possibilidade de ser um cão ou um poste a servir de consolo a um cão. No dia da encenação pais, avós transitavam orgulhosos, assoberbados, pelo pátio da escola. Eu haveria de ter orgulho de quê?, diga-me. Ter um filho que se contenta e se realiza em ser cão? A história monótona transcorria normalmente: os bebês nos colos das mães dormiam tranquilos, avós tricotavam e acenavam, risonhas, aos netos; pais, após litros de cerveja, aproveitavam o escurinho para cochilar. O sapato cravejado de lantejoulas. A menina, perfeita Cinderela, de pé esticado. Sua vez – ordenou a professora. Ficou quieto, calmo, como se dele brotasse a quietude que reside no coração dos tornados. Encarou a plateia e uivou: profundo, longínquo, denso, dolorido, tenso. Tão intenso a ponto de o Curupira desentortar os calcanhares e o Paranapanema deixar de buscar o rio Paraná para vislumbrar o mar... A professora desmaiou. Atores correram tresloucados. Crianças choraram, avós se benzeram e bêbados despertaram. Desceu do palco e com aquele andar desengonçado de querubim veio a mim, abraçou-me, arregalou olhinhos venusianos e sorriu.– Viu, mãe? Não sou cachorro; sou um lobo. O mais belo, forte e poderoso dentre todos, meu filho.

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