quinta-feira, 28 de agosto de 2014

Ademir Demarchi

No romance O enteado (1983), o escritor argentino Juan Jose Saer ficcionaliza a chegada dos espanhóis em algum lugar incerto das terras sul-americanas e seu contato com a tribo indígena dos colastinés.

O que pareceria se anunciar como uma reinterpretação de um dos conhecidos relatos do encontro dos europeus com os aborígenes acaba por tomar outros rumos na escrita de Saer. Isso porque, mal o capitão do navio e seus marinheiros iniciam uma conversa com os indígenas, são atacados por eles, desfazendo a encantada imagem em nós fixada do que foi esse contato. Apenas o narrador do romance escapa de morrer, transformando-se no enteado, adotado pelos índios e que, por isso, assiste seus companheiros mortos no combate serem levados pela tribo para um banquete coletivo.

Tendo escapado do massacre, ele se confronta com o que define como barbárie, tentando entender por que os índios, antropófagos, comem os outros que combateram, transformando-se, aos seus olhos, em bárbaros, muito diferentemente dos nativos dóceis tão repetidamente lidos em relatos dos europeus que descobriram a América hispânica ou o Brasil. Esse narrador, ainda que baseado também num fato verídico de um grumete espanhol, tem muito do Hans Staden alemão que foi adotado pelos índios antropófagos brasileiros, escapando por pouco de ser devorado e sobrevivendo para escrever um dos mais interessantes relatos de convívio com a antropofagia.

O relato de Staden serviu para inspirar muito do que se produziu sobre esse assunto no Brasil, especialmente por Oswald de Andrade, que formulou toda uma valiosa teoria de assimilação cultural do outro europeu para ser usada por nós a fim de buscarmos a singularidade da nossa cultura através da devoração simbólica do outro. Para o narrador do romance de Saer, que também sobrevive e retorna à Europa para escrever seu relato, a necessidade de devorar carne humana pelos colastinés, apesar da teia de irrealidade que ele cria, é um caminho para alcançar o conhecimento da realidade e melhor se inserir nela.

O enteado, porém, ressalta o mal-estar que acomete os indígenas quando comem a carne humana, com febres, vômitos e todo tipo de reação agônica que parece estar mais nele que vê nisso um ato de barbárie que propriamente nos antropófagos. Em sua busca de entendimento de como isso se configura, ele descreve a comilança como um ritual coletivo, preparado à base de uma bebida que dopa os sentidos dos índios esvaziando toda capacidade de estranhamento para que possam comer o outro humano que combateram e mataram.

Essa descrição, é claro, tem muito do senso católico europeu, para o qual é impossível, mesmo com droga, alcançar o conhecimento com naturalidade devorando fisicamente o outro, uma vez que a Natureza é selvagem e precisa ser catequizada. Por isso, sob o olhar desse narrador europeu que se confronta com o estranho total que é o aborígene americano, essa devoração somente é possível com muita droga, ingerida pelos índios até alcançarem um grau de anestesiamento total do sentido do que seja o real.

Esvaziado, assim, o significado da ritualização da devoração do outro, resta apenas a droga como sinônimo de barbárie, num julgamento e condenação do seu uso pelo europeu, que chega até os nossos dias. A droga aceitável, assim, passa a ser apenas aquela controlada pela instituição, quer religiosa, quer governamental, sendo incorporada pelo capitalismo e todas as instituições e saberes, como a medicina e psicologia, de tal forma que sirva apenas não para abstrair-se da realidade, mas, antes, pelo contrário, para alcançá-la como única forma possível de conhecimento. 

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