Máquinas lúcidas
Por Marcelo Ariel
“Ela”, de Spike Jonze, é
um ensaio sobre a solidão e sobre a imanência, como em “Blade Runner”, de
Ridley Scott, aqui existe uma projeção de uma humanidade profunda em uma
máquina, mas o que importa mesmo no filme é sua proximidade com nossa vida
cotidiana, proximidade de milímetros.
O filme
de Spike Jonze cria uma nova vertente, a dos filmes que tem como protagonistas
um ator em estado de invisibilidade ou a não-presença de um dos atores em cena
utilizada como presença. Não se trata de uma animação onde isto acontece de um
modo figurado há décadas. A voz do programa: as vozes de Scarlett Johansson,
Brian Cox, Bill Hader, Spike Jonze e Kristen Wiig no filme simulam a
presença do humano dentro do programa de computador que por sua vez
simula para si mesmo uma humanidade que acaba por si.
Se
descontarmos o final new age do filme, provocar um choque no sistema da máquina
e pane no programa que leva as personagens humanas do filme representadas pelos
atores Joaquin Phoenix e Amy Adams a um reencontro com o grande vazio da
solidão, único lugar onde o outro pode ser tocado sem simulações. O que nos leva ao chamado
“mundo real”, uma das grandes e mais patéticas invenções da mente humana.
Quase sem dedos – Her
Por Aline Rocha
Quase sem dedos, Theodore
percorre seus dias e constrói suas relações. Quase sem dedos: as cartas
manuscritas, paradoxalmente, já não precisam das mãos; as funções do dia a dia
são regidas pela voz, o toque já não é mais necessário para que haja o amor. Her é
um filme que problematiza o toque.
Em mais da metade das
cenas, é o rosto de Theodore que ocupa toda a tela (semelhante a outro filme
sobre amor, corpo e limitações, La vie d’Adèle). São suas
expressões faciais que delineiam o ritmo da trama e as emoções do espectador,
como se a materialidade de sua face precisasse ser reiterada a todo momento. Ao
mesmo tempo, a voz de Samantha põe em xeque essa materialidade, já que ela
mesma, em sua ausência, também é material. E isso apenas por conta das
transformações que provoca na vida de Theodore. (Não seria exatamente isso o
cinema? A literatura? Um imaterial que só existe na medida em que modifica e
desloca uma outra vida, de outro ser. Talvez a arte possa ser entendida por
esse viés, assim como a existência).
Ao final, quando Theodore
e Amy sobem ao topo do edifício, já desamparados por sucessivas perdas, o filme
no ápice das desilusões; o espectador, preparado para um possível duplo
suicídio, é surpreendido com a cabeça de Amy deslizando sobre o ombro de
Theodore. Mais uma vez o toque, o encontro dos corpos como uma possível saída
diante da imensidão do céu nublado de Los Angeles.
“Como se divide uma vida
com alguém?”, pergunta Samantha a Theodore. E talvez a própria pergunta, a
tentativa do “saber por quê”, seja a resposta.
Quando saí da sala de
cinema, parei por alguns instantes em um bar em frente à Estação Botafogo.
Todos levavam um celular nas mãos, quase sem dedos para o copo, para a pessoa
adiante, para o cigarro queimando. Todos levavam um celular, exceto um senhor
sentado às minhas costas, que dizia, tentando estabelecer qualquer tipo de
conexão com os passantes entretidos em fones de ouvido: “78 anos, 4 mulheres e
3 filhos. Mais mal-criado que carne de cobra.” E repetia: “78 anos, 4 mulheres
e 3 filhos”, sintetizando sua vida.
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