sábado, 8 de março de 2014

Roberto Bolaño
Tradução Alessandro Atanes

Conselhos sobre a arte de escrever contos seguido de nota

Como já tenho quarenta e quatro anos, vou dar alguns conselhos sobre a arte de escrever contos. 1) Nunca se debruce sobre os contos um por um. Se alguém se debruça sobre os contos um por um, honestamente, pode-se estar escrevendo o mesmo conto até o dia de sua morte. 2) O melhor é escrever os contos de três em três, ou de cinco em cinco. Se vê que está com energia suficiente, escreve os contos de nove em nove ou de quinze em quinze. 3) Cuidado: a tentação de escrevê-los de dois em dois é tão perigosa como se dedicar a escrevê-los de um em um, e além disso leva em seu interior o jogo meio pegajoso dos espelhos amantes. 4) Deve-se ler Quiroga, deve-se ler Felisberto Hernández e deve-se ler Borges. Deve-se ler Rulfo e Monterroso. Um contista que tenha um pouco de apreço por sua obra não lerá nunca Cela nem Umbral. Deve-se ler sim Cortázar e Bioy Casares, mas de forma alguma Cela e Umbral. 5) Repito mais uma vez para ficar claro: Cela e Umbral, nem pintados. 6) Um contista deve ser valente. É triste reconhecer, mas é assim. 7) Os contistas costumam se jactar de ter lido Petrus Borel. De fato, é notório que muitos contistas tentam imitar Petrus Borel. Grande erro: deveriam imitar Petrus Borel no vestir! Mas a verdade é que não sabem nada de Petrus Borel! Nem de Gautier, nem de Nerval! 8) Façamos um acordo. Leiam Petrus Borel, vistam-se como Petrus Borel, mas leiam também Jules Renard e Marcel Schwob, sobretudo leiam Marcel Schwob e dele passem para Alfonso Reyes e daí para Borges. 9) A verdade é que só com Edgar Allan Poe teríamos de sobra. 10) Pensem no ponto número nove. Pensem e reflitam. Ainda tem tempo. Deve-se pensar no nove. Se for possível: de joelhos. 11) Livros e autores altamente recomendáveis: Do sublime, de Pseudo Longino; os sonetos do desgraçado e valente Philip Sidney, cuja biografia foi escrita por Lord Brooke; A Antologia de Spoon River, de Edgar Lee Masters; Suicídios exemplares, de Javier Marías. 12) Leiam este livros e leiam também Tchekhov e Raimond Carver, um dos dois é o melhor contista que nos deu este século. 

Publicado originalmente sob o título "Números" na revista Quimera (Barcelona), nº 166, fevereiro de 1998, p. 66. In: BOLAÑO, Roberto. Entre Paréntesis (Anagrama, 2004). 

Nota do tradutor dos conselhos

Buscando fugir da especulação e fofoca literária sobre gostos, preferências, erros ou acertos de Bolaño, queria ressaltar: 1) o mote inicial - "hay que leer a" / "deve-se ler", não importa (o caramba que não!) aquilo que se lê, mas deve-se ler. Escrever requer cultivo; e 2) o time latino-americano que o autor elenca entre os conselhos. Isso faz pensar no que já se foi dito sobre Bolaño renegar o boom latino-americano. Dá pra ver como não, não é?

Como nas seleções, pode-se trocar um nome por outro, mas a herança está lá, oito hispano-americanos, da Argentina ao México. E aí Bolaño não se mostra nada alternativo. Um leitor interessado não poderia discordar da escolha, por exemplo, de cinco autores do Cone Sul (os uruguaios Quiroga e Hernández e os argentinos Borges, Cortázar e Casares. Formam um cânone mais para o fantástico (Borges, Hernández) do que para o maravilhoso (Marquez, não citado), que pouco cita em seus textos mas que usa como matéria de reescrita para a abertura da "Parte dos Críticos" do romance "2666", que parafraseia a famosa abertura de "Cem anos de solidão".

Cem anos de solidão
Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o Coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo. Macondo era então uma aldeia de vinte casas de barro e taquara, construídas à margem de um rio de águas diáfanas que se precipitavam por um leito de pedras polidas, brancas e enormes como ovos pré-históricos. O mundo era tão recente que muitas coisas careciam de nome e para mencioná-las se precisava apontar o dedo...

A parte dos críticos
A primeira vez que Jean-Claude Pelletier leu Benno Von Archimboldi foi no Natal de 1980, em Paris, onde cursava estudos universitários de literatura alemã, com a idade de dezenove anos. O livro em questão era D’Arsonval. O jovem Pelletier ignorava então que esse romance fazia parte de uma trilogia (composta porO Jardim, de tema inglês, A máscara de couro, de tema polonês, assim como D’Arsonval era, evidentemente, de tema francês), mas essa ignorância ou esse vazio ou esse desleixo bibliográfico, que podia ser imputado a sua extrema juventude, não reduziu o ápice de deslumbramento e de admiração que lhe produziu o romance. 

Escrevi uma vez sobre isso: "o paralelismo é evidente: o vai-e-vem temporal (muitos anos depois iria recordar; a primeira vez que leu), a nomeação da cidade, a experiência formadora (conhecer o gelo, ler Archimboldi), a ignorância como o vazio inicial (do universo de Macondo; do mundo da pesquisa acadêmica). Pode-se pesquisar e especular sobre as intenções de Bolaño, mas o fato é que o jogo de espelhos está aí."Não há nada novo aí, o inovador só inova ao conversar com a tradição. Bolaño escolheu uma baita seleção para continuar o legado. Eu acho que deu conta, mas não sabemos como se dará o desenrolar da trama de seus livros na história. Sem falar de Poe. Pensem no número nove.

Uma curiosidade. Schwob é um dos autores que aparecem na série de poemas em prosa de Bolaño “Un paseo por la literatura”, inédito em português, no qual o narrador descreve sonhos nos quais aparecem uma série de escritores. Schwob aparece no sonho 49. A tradução é minha:

49.
Sonhei que nas diligências que entravam e saíam de Civitavecchia via o rosto de Marcel Schwob. A visão era fugaz. Um rosto quase translúcido, com os olhos cansados, apertado de felicidade e dor. 
Leia também:


0 comentários:

Postar um comentário

Os comentários ao blog serão publicados desde que sejam assinados e não tenham conteúdo ofensivo.