quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

Matías Cravero
Tradução/nota Alessandro Atanes

Abaixo, testemunho de Matías Cravero sobre o fenômeno literário da literatura em livros de papelão.

A palavra em espanhol "cartón" deu nome às cartoneras, editoras que passaram a usar o material como prinicpal matéria-prima de seus livros. No Brasil, são as catadoras, como a Dulcineia Catadora, de São Paulo, a primeira no país. Aqui na Ilha de Urubuqueçaba, entre Santos e São Vicente, temos a versão ca(n)tadora, com rabo de sereia. São inúmeras as iniciativas, mais de uma centena principalmente na América Latina, mas Estados Unidos e Europa também. 

Escrever é lançar as garras na escuridão. Avançar por terrenos inexplorados, inventar pontes onde só há vazios e despenhadeiros. Escrever é apostar na aventura de expandir os horizontes vitais, empurrando os limites e obstáculos um pouco mais para longe.O escritor cria novas realidades, jogando para o ar sementes de outros mundos possíveis. Assim, então é possível pensar que Proust e Kerouac reinventaram o dia a dia, dotando a cotidianidade de novas e superpoderosas ferramentas de reflexão e lirismo.

Mas atenção, escrever não é coisa de grandes e pequenos, de reconhecidos e obscuros. Escrever é um fogo particular que atravessa o indivíduo, um fogo que não sabe de hierarquias. Estas últimas, claro que existem, mas são estruturadas posteriormente, uma imposição da indústria editorial hegemônica, que é a que, quase sempre, decide quem será “grande” e “reconhecido” e quem será um “obscuro” pária expulso do parnaso.

Sede de Eloisa Cartonera em Buenos Aires, em La Boca
Agora, bem, fundamentalmente nesta época, de atroz ofensiva neoliberal em escala global, a indústria editorial hegemônica está mais elitista que nunca, mais injusta e preconceituosamente seletiva. Mas os povos são sábios, as multidões não param com o labor criativo e democrático na expansão, por isso as coisas vêm mudando desde 2003. Todo este processo de democratização do livro começou em Buenos Aires, como já adiantamos, em 2003, quando o poeta Cucurto e o artista plástico Javier Barilaro decidiram fundar Eloisa Cartonera (foto). Essa foi a “pedra angular”, o ponto de partida que gerou o contágio positivo, a comunicação horizontal para que hoje existam editoras cartoneras em toda a América Latina, Espanha e França.

Em um artigo jornalístico de 2009, Tomás Eloy Martínez definia Eloisa Cartonera do seguinte modo: “Eloísa Cartonera é uma comunidade artística e social… A editoria nasceu como um recurso da imaginação frente à crise. O artista plástico Javier Barilaro e Washington Cucurto faziam libros de poemas ilustrados em cartolina, mas tiveram de um dia para outro interromper seu trabalho quando a desvalorização da moeda levou para as nuvens o preço do papel. Cucurto teve a iluminada ideia da editora em 2003, quando os catadores da papel (cartoneros) eram já inseparáveis da paisagem de Buenos Aires”. A escritora Fernanda Laguna conseguiu um lugar no bairro de Almagro, onde foi inaugurada a oficina de papelão No Hay Cuchillos sin Rosas (Não Há Machados sem Rosas), e Cucurto pediu a vários autores a doação de seus direitos para poder começar. “Buscamos material inédito ou esquecido, mas também de vanguarda e cult”, diz. Um de seus êxitos (quase mil exemplares) foi o inédito Mil gotas, de César Aira, apesar dos protestos de Victoria, uma senhora catadora de papel que detestava o autor.

O própio Cucurto se tornou também um autor cultuado. Seu nome é repetido nos congressos acadêmicos dos Estados Unidos e pelo menos cinco estudantes de doutorado escrevem teses sobre sua obra. Sabe-se bem que até hoje, em pleno 2013, e em nossa região, a querida América do Sul, além de todas as conquistas sociais protagonizadas por diferentes governos pós-neoliberais, o livro tradicional, o livro publicado e distribuído pelas grandes editoras, continua sendo um objeto de luxo, tanto por seus altos preços de mercado como pelos títulos e conteúdos que são publicados.

Assim, pois, também neste presente de mudanças aceleradas, as editoras cartoneras continuam sendo uma opção clara para aproximar as camadas populares da leitura. As edições cartoneras não só são muito baratas mas também apresentam títulos e conteúdos alternativos, rebeldes, originais, que dificilmente são publicados pelas grandes corporações editoriais. Pessoalmente, durante o ano de 2011 pude realizar meu primeiro contato com uma editora cartonera, a Camareta, de Guayaquil, Equador. Com eles publiquei um livro de contos que (o efeito contágio como círculo virtuoso se confirma outra vez) repercutiu em Santiago, Chile, o que, por sua vez, me abriu as portas da amizade de Olga Sotomayor Sánchez, alma máter de Olga Cartonera. Lá, em Santiago, acabo de publicar neste 2013 meu livro de poemas Otras Balas (“Outras balas”). Desta maneira consegui fazer com que fossem conhecidos textos que, por diversas razões, as editorias hegemônicas, essas que só confiam nos “êxitos certos”, nunca teriam aceitado publicar.

Mas a coisa não acaba aí. Graças às editoras cartoneras pude também forjar laços de camaradagem com verdadeiros guerreiros da cultura, com verdadeiras lutadoras das letras (e aquí Olga brilha com luz própria), que desde a base, sem garantias nem vantagens concedidas de antemão, apostam em novas vozes, em escritores e escritoras que têm coisas a dizer, que trazem outras cores e outras matizes a esta polifonia existencial.

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