sexta-feira, 26 de outubro de 2012


Alessandro Atanes, para o Porto Literário

A série de matérias que o jornal Diário do Litoral, editado em Santos, vem publicando desde domingo, dia 21, sobre o navio-presídio Raul Soares (que esteve ancorado no porto da cidade entre abril e outubro de 1964, após o golpe militar) vem acrescentar mais alguns relatos à série de textos que existem sobre o tema. O principal entrevistado é o médico alemão Thomas Maack, que hoje mora em Nova York. Ele vivia no Brasil e, após o golpe, acabou sendo levado para o navio acusado de subversão.

No momento em que comecei a escrever este texto a série ainda não havia acabado, então tratarei da reportagem em outra ocasião. Queria, porém, destacar uma parte do relato do repórter Francisco Aloise, no texto do dia 23, que apresenta três calabouços do navio. A informação não é nova, mas a descrição enumerativa, de aparência neutra, ressalta por contraste o horror real das celas.

1 – El Marroco. Era um salão totalmente metálico, ao lado da caldeira, sem nenhuma ventilação, onde a temperatura passava dos 50 graus, não possuía iluminação. Ainda assim era o melhor.

2 – Night and Day. Era uma pequena sala onde o preso ficava com água gelada até o joelho.

3 – O Casablanca. Era onde eram despejadas as fezes dos presos.

O interesse da passagem está na piada amarga inventada pelos detidos, entre eles muitos operários da cidade, ao darem aos calabouços nomes de boates da noite do cais de Santos. Esse fato de linguagem, a piada terrível, é a construção verbal que permite (no caso, ainda que uma pequena troca de um nome por outro) ao relato captar quem o ouve ou o lê.

Epílogo



A imagem acima é o início da construção de um mapa. Ao trocar as celas pelas boates, a piada amarga traça também um território. Do navio-presídio, fundeado do outro lado do canal do Porto, perto da Ilha Barnabé, junto à área continental (ponto A, em verde, na parte superior da imagem), até a Rua General Câmara, no Centro da cidade (ponto B, parte inferior da imagem), endereço de duas das boates que dão nome aos calabouços, rua que até hoje mantém a fama de principal da boca santista.

O navio-presídio junto ao porto detém o prisioneiro sem retirá-lo de seu território. É mais um navio no Porto como tantos outros, mas é um navio diferente, como se fosse um não-lugar ou um navio de outra dimensão, a da sombra.

Referências
Francisco Aloise. Era uma vez um navio-prisão sem lei e sem respeito à dignidade humana. Especial. Diário do Litoral, 23/10/2012 (pág. 7).

Lídia Maria de Melo. Thomas Maack, médico e preso do Raul Soares. A Tribuna, 2/11/2003.

2 comentários:

  1. Ducaralho... o porto de Santos guarda muitas histórias. Valeu Atanes!

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  2. Nessa sua matéria há uma brincadeira infantil de sucesso entre as crianças: ver sem ser visto, com navio introduzido no porto, para uma compulsória "clausura de Irmãs Carmelitas" desfocada, em lugar pseudo universal, submerso naquele que flutua - navio. Ao resguardar suas próprias vísceras comem, o outro, com inapropriados falos, mas estéreis, por que de outros, em "amor" pelo Estado, "ordeiro", mesmo que negligencie a pátria e assim transborde em gozo inorgástico. Sinto muito. Ricardo.

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