sexta-feira, 28 de setembro de 2012

Alessandro Atanes, para o Porto Literário


I
Desesperado com a irreversível decadência do Teatro Nacional de Ópera, em estado de ruínas com a grande crise, seu José (imagem ao lado), velho lanterninha da casa, assume a missão de ressuscitar e renovar a arte lírica entre as paredes do velho teatro. Com o intuito de impulsionar estre renascimento, seu José ensaia um grupo de indigentes que moram no local para representar a ópera Rigoletto. Este é o enredo de El Nacional (vídeo abaixo), peça encenada em 14 e 15 de setembro no Teatro Coliseu, Centro Histórico de Santos, encerrando o festival de teatro Mirada.


O espetáculo fez parte da cota da parte ibérica deste festival “ibero-americano”, foi apresentado pelo da Espanha Els Joglars (os menestréis em catalão). Criado em 1993 durante uma crise econômica, El Nacional volta a ser metáfora para a atual crise que assombra cada vez mais a Espanha e toda a Zona do Euro, este território econômico que se sobrepõe ao espaço dos países. A jornalista catalã Marta Molina, que formou no Brasil a Aliança Internacional dos Jornalistas, descreveu a crise em uma reportagem para a Variopinto, revista mexicana mensal:

"Crise" é a palavra que mais ressoa nas conversas nos cafés, sobremesas, no ônibus e no metrô; já é um substantivo comum na vida cotidiana dos espanhóis. Não está só na boca de sindicalistas, ministros da economia e políticos de todas as linhas e cores, está também na de casais apaixonados que compraram uma residência e que já estão hipotecados por toda a vida. Muitos conservam o amor, mas em vez de uma casa dividem uma dívida bancária impossível de saldar.

Assim como os lares dos espanhóis (ou as casas dos norte-americanos em 2008 com o estouro da bolha imobiliária), o teatro Nacional também chega a seu nível mais precário no espetáculo.

II
Mas ao contrário de 1993 (ainda faltavam cinco anos para a criação do Euro), os países hoje emergentes ainda engatinhavam: de um lado, Índia e China criavam suas estratégias para o século XXI; de outro, a Rússia acabava de sair de 70 anos de comunismo; e, do lado de cá, o Brasil começava a implantar as políticas neoliberais que foram a regra da última década do século XX.

Quase 20 anos depois, é bem sintomático que, na sessão de 15 de setembro, na cena em que se fala que o teatro virá abaixo para a construção no lugar de uma agência do Deutsche Bank, o ator, improvisando, diz que ali será levantada, ao invés do banco do texto original, uma agência do Banco do Brasil.

Mas sem ufanismos nacionalistas. El Nacional é também o próprio Coliseu, que viveu décadas decadentes, com shows e filmes de sexo, e pessoas sem casa também morando por lá. E ainda que o teatro esteja lindo, o mesmo não se pode dizer do entorno, como atestou o próprio pessoal do grupo Els Joglars no blog En Gira, no qual comentam os lugares por onde passam:

O Teatro Coliseu, onde atuamos, está situado no centro histórico de Santos, perto da área portuária. Este porto é um dos maiores da América do Sul. A decadência das casas, o cheiro de petróleo, a misturança de pessoas, a provisão de frutas tropicais e o projeto do Museu Pelé formam a paisagem que veste nosso teatro onde ontem recebemos um caloroso "bravo" brasileiro. Deve-se acrescentar valor ao público que lá esteve pela coragem de se deslocar a este bairro que fica perigoso a partir das seis da tarde.

III
Não é só da crise econômica de que trata El Nacional. A decadência do teatro é também um retrato do artista burocratizado e profissional que escreve mais projetos para editais e fundos do que realmente cria. Por isso que seu José, o lanterninha, quer encenar o Rigoletto, personagem que para ele representa o símbolo da arte cênica: "uma profissão de rebeldes e asselvajados, completamente o contrário do teatro elitista, petulante e submisso, que degradou o grêmio do que foi o glorioso ofício de pícaros, putas, safados e veados, enterrados fora dos cemitérios".

A coluna chega ao fim com as palavras do diretor do espetáculo e autor do texto, Albert Boadella:

O teatro, como arte, parece destinado irreversivelmente à pura exibição museística e arqueológica. Os sinais são evidentes. A grande complexidade burocrática e econômica que existe hoje entre a simples formulação da ideia criativa e sua realização prática propiciou a intervenção protecionista dos Estados com seu novo modelo neoliberal de nacionalização cultural.

Nosso velho ofício teatral agoniza entre assessores, conselhos e departamentos ministeriais. As piolhentas carroças foram substituídas por custosos edifícios faraônicos, mas no cominho se perdeu algo tão essencial como a obscenidade e a transgressão. Hoje qualquer representação é suscetível de obter o Prêmio Nacional de Teatro e esta situação decadente é uma responsabilidade exclusiva de todos os profissionais do ofício que, em sua estúpida vaidade, quiseram ser algo mais respeitável que uns simples bufões.

Ficha técnica 
Texto, direção e espaço cênico: Albert Boadella
Com: Begoña Alberdi, Dolors Tuneu, Enrique Sánchez-Ramos, Jesús Olivé, Minnie Marx, Pillar Sáenz, Ramon Fontseré, Xavi Sais.

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