terça-feira, 31 de julho de 2012


Ademir Demarchi

O Fausto do Goethe me esperava há meses desde que veio de um sebo dos diabos contatado no Estante Virtual, portal na internet que dá acesso a inúmeros infernos onde se confinam os livros. Finalmente chegou a hora da releitura, desta vez em uma primorosa edição e tradução publicada pela Editora 34. A hora chegou depois de ver o filme livremente inspirado no livro de Goethe, dirigido por Sokurov. Ele é o mais importante e interessante diretor de cinema russo em atuação, é fantasioso e peculiar e, com Fausto, completou uma tetralogia focada no poder, composta por filmes sobre Hitler (Moloch), Hiroito (O Sol) e Lênin (Taurus).

Quanto ao livro, trata-se de um clássico, em que Goethe se apropria de relatos populares que conheceu desde criança, sobre um sábio que faz um pacto com o demônio para descobrir o que mais o intriga, sua maior ambição: onde reside a alma. Como se sabe, lidar com demônios não é coisa fácil e logo esse diabo goethiano ilude Fausto colocando a cenoura do amor personificada na bela Maragarita à sua frente, desviando-o de tudo o que antes o interessava, até ele fazer o pacto, que assina com o próprio sangue.

A versão do demônio por Sokurov é divertida, muito diferente por exemplo daquela de Coração Satânico, dirigido por Alan Parker, que, com Robert de Niro cria um demônio elegante e sedutor, de cartola e casaca, ou do impecável Al Pacino de O Advogado do Diabo. O demônio de Sokurov é um cidadão comum, manco, um usurário, mas também um monstrengo, logo se conclui quando ele tira todas as roupas para um banho e se vê que ele tem o corpo invertido.

Assim, depois do dia estafante de rotina, nada como levar um diabo para a cama, correndo-se o risco de cochilar e levar uma livrada na cara devido ao peso do volume. Mas eis que em vez de ler tive uma surpresa que me fez perder o sono e enveredar, tal como no livro ou no filme, por outros caminhos.

Constatei que faltava a folha de rosto nos dois volumes, aquela com os dados da edição, editora, tradutor etc. Então notei que haviam sido subtraídas, e de fato o foram, mas por uma espécie de diabo astucioso, pois a supressão foi feita com grande habilidade, sem parecer que as páginas foram rasgadas e o corte que houve era percebido apenas ao se abrir um pouco mais intensamente as folhas.

Para mim isso teria apenas um motivo, ocultar algo. Como não se trataria provavelmente de uma dedicatória, comum em livros em sebo, pois os que os descartam ficam com vergonha que o autor venha a saber disso e arrancam a folha de rosto, esse de Goethe é uma tradução, sendo improvável isso. Então, não encontrando vestígio algum do motivo no primeiro volume, fui buscar no outro. Logo encontrei a marca azulada de um carimbo, oculta por um papel que foi colado em cima dela numa parte que, se cortada, prejudicaria o texto. No meio do volume, folheando mais um pouco então finalmente encontrei o que o diabo ocultou: "Biblioteca Pública X", situada numa Cohab em São Paulo.

Ou seja, algum diabo com habilidade e inteligência mínima sabia que aqueles livros valeriam alguma coisa e os roubou para vender. Se fosse talvez um pouco mais inteligente e não passasse fome, ele mesmo perdido em seu inferno nessa Cohab, o teria lido e usado para endemoniar com cultura e senso crítico os Faustos que o cercassem. Veja que não é fácil a vida de um demônio mais poderoso, algum demônio iluminista do qual não há sinal nos livros, que os enviou àquela biblioteca escolar esperando que seduzisse algum Fausto que os lesse. Mas eis que sua intenção é desviada e os livros somem daquela área de pobreza, justamente por ação de algum pobre diabo e vão parar nas mãos de outro Fausto. Que diabo!...

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