sexta-feira, 15 de junho de 2012


Alessandro Atanes, para o Porto Literário *

Apesar de nem aparecer no texto, Santos é porto da onde parte um “soberbo três mastros brasileiro inteiramente branco, admiravelmente limpo e luzidio”, navio que no conto O Horla (2ª versão, 1887), de Guy de Maupassant, acaba por levar um horrível ser até as margens do Sena, onde passa a assombrar o protagonista da trama. Lemos em seu diário a passagem da embarcação em frente à sua residência.

Acostumado ao tráfego já comum de bandeiras internacionais em rotas que chegavam à capital da França, ele só se dá conta ao ler semanas depois, já tomado pela presença do horla, uma reportagem em uma revista científica sobre uma epidemia de loucura na província de São Paulo. Então ele liga seu caso ao navio: “Eu o achei tão lindo, tão branco, tão alegre! O ser estava ali, vindo de lá, de onde sua raça nascera! E ele me viu! Ele viu a minha casa branca também; e saltou do navio para a margem. Oh! Meu Deus!” (leia mais aqui).

Além do três-mastros, no final do século XIX as ferrovias e o motor a vapor dos navios propiciaram viagens cada vez mais práticas e rápidas ao redor do mundo. Durante todo o período colonial até a década de 1880, cerca de 15 milhões de europeus migraram para o continente americano. Aí ocorre um salto. Nos 45 anos seguintes, até 1915, mais de 30 milhões de pessoas da Europa chegam às Américas, como compara o professor de História Herbert S. Klein, da Universidade de Columbia.

Nesse contexto de expansão do transporte, os trapiches e pontes sobre as praias da Santos colonial acabam por ser substituídos pelo concreto do cais dos armazéns de 1 a 8. O porto garante seu lugar nas principais rotas internacionais. É o exemplo que Klein usa em seu artigo Migração internacional na História das Américas, publicado no livro Fazer a América, organizado pelo historiador Boris Fausto:
O grande número de viagens marítimas também garantia contato constante e relativamente imediato com todas as nações americanas do Atlântico. Para citar um único exemplo, no período posterior a 1880, partiam do porto de Santos, no Brasil, vários navios por semana com destino aos principais portos europeus do Mediterrâneo e até do Atlântico Norte, e todos tinham a capacidade de transportar na terceira classe várias centenas ou mesmo milhares de imigrantes.
I No jornal
É exercendo seu papel de nó na trama das trocas internacionais que o porto de Santos aparece em “O ano da morte de Ricardo Reis”. Nesse romance de José Saramago de 1984, o mesmo contexto histórico tem a função de abrir a trama, pondo a viagem como possibilidade desde o primeiro parágrafo:
Aqui o mar acaba e a terra principia. Chove sobre a cidade pálida, as águas do rio correm turvas de barro, há cheia nas lezírias. Um barco escuro sobe o fluxo soturno, é o Highland Brigade que vem atracar ao cais de Alcântara. O vapor é inglês, da Mala Real, usam-no para atravessar o Atlântico, entre Londres e Buenos Aires, com uma lançadeira nos caminhos do mar, para lá, para cá, escalando sempre os mesmos portos, La Plata, Montevideo, Santos, Rio de Janeiro, Pernambuco, Las Palmas, por esta ou inversa ordem, e, se não naufragar na viagem, ainda tocará em Vigo e Boulogne-sur-Mer, enfim entrará o Tamisa como agora vai entrando o Tejo, qual dos rios o maior, qual a aldeia.
Já mais para o final, o porto volta ao livro outra vez como escala, desta vez no jornal:
Ricardo Reis percorre demoradamente as páginas, distrai-se com as novidades correntes aquelas que tanto podem vir daqui como dalém, deste tempo como de outro, do presente como do futuro e do passado, por exemplo, os casamentos e baptizados, as partidas e chegadas, o pior é que, mesmo havendo uma vida mundana, não há um mundo só, se pudéssemos escolher as notícias que queremos ler qualquer de nós seria John D Rockefeller. Passa os olhos pelas páginas dos pequenos anúncios, Habitações alugam-se, Habitações precisam-se por este lado está servido, não precisa de casa, e olha aqui nos informamos da data em que sairá do porto de Lisboa o vapor Highland Brigade, vai a Pernambuco, Rio de Janeiro, Santos, mensageiro perseverante, que notícias nos trará ele de Vigo...
II Anotações
Em Consejos de un discípulo de Morrison a un fanático de Joyce (1984), escrito a quatro mãos por Roberto Bolaño e A.G. Porta, o protagonista é um jovem escritor de Barcelona, Ángel Ros, ainda sem publicar, que acaba cometendo crimes ao lado da namorada latino-americana. Em alguns capítulos acompanhamos Ángel Ros escrevendo a história de Dédalus, um assaltante especialista em James Joyce. Em forma de notas para compor seu personagem, Ros, como em O Horla, também sem dizer o nome do porto, traça outra dessas rotas. A tradução é da coluna:
Dados para uma biografia de Dédalus 
Nascimento em Barcelona / Aos três anos a família se muda para o Brasil / Lembranças da partida / Imagens como flashes sem som / Primavera, pai, mãe, irmão, malas / Escala nas canárias / A mãe doente / A procura de noite por medicamentos pelo porto e arredores / Medo que o barco parta sem eles / As luzes da cidade / Estado de São Paulo / Diversos domicílios em novas localidades / Cofundadores delas com outras famílias / Ideia tropical / Vila Santo Eduardo / Vila Rica / Vila Formosa / Vida com os negros / Enterro de excrementos na mata / Calor / Inundações / Negros a cavalo com revólveres / Pai vendedor de cadeados / Operário na construção / Remendos / Corredor de produtos de consumo majoritário / Doze horas de trabalho / Inundações: um negro bêbado morre afogado no rio / A mãe lhe ensina a ler / Brincadeiras na lama / A mata: cobras e outros animais / A família decide voltar para Barcelona...
Epílogo
O tema de hoje contou com as discussões realizadas nas últimas duas semanas na oficina “Conheça Santos por meio da Literatura”, que conduzo no Ponto de Cultura Estação da Cidadania e Cultura, lá no Fórum da Cidadania. Muito obrigado aos participantes pelas ideias e reflexões. Na segunda-feira que vem, dia 18, leremos os poemas de autores que viveram e vive em Santos como Roldão Mendes Rosa, Narciso de . Andrade, Madô Martins, Alberto Martins, Ademir Demarchi e Flávio Viegas Amoreira, entre outros. Estão todos convidados.

Referências:
Herbert S. Klein. Migração internacional na História das Américas. In: Boris Fausto (org). Fazer a América. São Paulo: Edusp, 2000.

José Saramago. O ano da morte de Ricardo Reis. Fonte digital. Acesso em 03/06/2012.

Roberto Bolaño e A. G. Porta. Consejos de un discípulo de Morrison a un fanático de Joyce seguido de Diario de bar. Barcelona, Espanha: Acantilado, 2006 (1ª ed. 1984).

* Alessandro Atanes, jornalista, é mestre em História Social pela Universidade de São Paulo (USP). Servidor público de Cubatão, atua na assessoria de imprensa da prefeitura do município.

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