quinta-feira, 1 de março de 2012

Alessandro Atanes*, para o Porto Literário

As narrativas de testemunho em primeira pessoa – como Memórias do cárcere (Graciliano Ramos) ou O que é isso, companheiro? (Fernando Gabeira) – são entranhadas pela memória dos fatos vividos pelo narrador, são verdadeiros documentos históricos e na Argentina têm até valor como prova testemunhal nos julgamentos de torturadores.

Mas há um paradoxo na literatura de testemunho que aprendi lendo a ensaísta argentina Beatriz Sarlo. Por ser realista, a literatura de testemunho só dá conta da experiência de quem sobreviveu ao cárcere das ditaduras, fonte da memória que constrói o relato. Ou de outra forma: mortos e desaparecidos nada narram.

Já vão mais de vinte anos desde que as ditaduras militares do Cone Sul foram derrubadas. Por causa disso, Beatriz Sarlo conclui seu livro Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva (2007) afirmando que as narrativas sobre os dramas da ditadura devem agora avançar para além da experiência e aumentar a fabulação – isto é, a criação de ficções – sobre os episódios das ditaduras. Ela explica o motivo dessa guinada melhor do que eu:

A literatura, é claro, não dissolve todos os problemas colocados [pela reflexão sobre a sociedade], nem pode explicá-los, mas nela um narrador sempre pensa de fora da experiência, como se os humanos pudessem se apoderar do pesadelo, e não apenas sofrê-lo.

I Vila Socó
Marcelo Ariel em
autorretrato em celular
A primeira vez que citei a afirmação acima foi para ler o poema Caranguejos aplaudem Nagasaki, de Marcelo Ariel, sobre a tragédia de Vila Socó (cujo incêndio de 24 de fevereiro de 1984 completou na semana passada mais um aniversário). Publicado em 2008 no livro Tratado dos anjos afogados, seus versos formam imagens poéticas que nos levam diretamente para o incêndio, onde nenhum sobrevivente teria chegado. Centenas de vítimas sem nome (os levantamentos são inconclusivos sobre o número total de mortos) têm em sua obra um monumento. O ensaio sobre o poema, Vila Socó e a literatura, está aqui e, abaixo, um trecho significativo sobre a questão de Sarlo:

(Vila Socó)
Corpos em chamas se atiram na lama
mulheres e crianças primeiro
caranguejos aplaudem Nagasaki
bebê de oito meses é defumado
enquanto Beatriz
agora entende o poema derradeiro
Beatriz mãe solteira antes de morrer
deu um inútil pontapé na porta.

II A junta militar por dentro
Outro autor que li sobre o mesmo prisma foi o chileno Roberto Bolaño. É algo que vale para muito de sua obra, mas referi-me principalmente ao romance Noturno do Chile no texto História e literatura em Bolaño (aqui), primeira obra sua publicada no Brasil, em 2004, um ano após sua morte. Seu narrador é um crítico literário e poeta que, ao fim da vida, narra o começo de sua carreira na década de 70 quando, após o golpe, forma-se como padre e, após alguns serviços intelectuais para a Opus Dei, acaba dando aulas de marxismo para a junta militar.

Enquanto Ariel traz o inferno de Dante Alighieri e a bomba atômica para compor o horror de Vila Socó, Bolaño adota outro mecanismo: por meio do relato do narrador inventado, o escritor chileno nos deixa ao lado de Pinochet e seus generais e comandantes. Ele nos mostra o horror por dentro, na antessala aonde só a ficção pode alcançar:

As fardas brilhavam, ora como cartões coloridos, ora como um bosque em movimento. Minha batina negra, mais que ampla, pareceu absorver num segundo toda a gama de cores. Naquela noite, a primeira, falamos de Marx e Engels. Das primeiras obras de Marx e Engels. Depois comentamos o Manifesto do Partido Comunista e a Mensagem do comitê central à Liga dos Comunistas. Como leitura, deixei-lhes o Manifesto e Os conceitos elementares do materialismo histórico, da nossa compatriota Marta Harnecker. Na segunda aula, uma semana depois, falamos das Lutas de classes na França de 1848 a 1850 e do Dezoito brumário de Luís Bonaparte, e o almirante Merino perguntou se eu conhecia pessoalmente Marta Harnecker e o que pensava dela. Respondi que não a conhecia pessoalmente, que era discípula de Althusser (ele ignorava quem era Althusser; esclareci) e que havia estudado na França, como muitos chilenos. É boa moça? Creio que sim, disse eu.

III Novas leituras
Novas leituras têm acrescido esse repertório de fabulação dos relatos pessoais. De Marcelo Ariel recebi Os Emigrantes, do alemão W.G. Sebald, tema da semana passada (leia aqui), em que um narrador dos anos 90 conta histórias de pessoas que conheceu na juventude em torno dos anos 60 e 70, já mortas no tempo da narração, que compartilharam a experiência da emigração durante os anos de ascensão do fascismo na Europa, principalmente o Nazismo na Alemanha. Pessoas comuns com histórias marcadas pelo deslocamento geográfico. Cada narrativa tem como título o nome de um dos perfilados.

Para chegar ao efeito de reflexão de que fala Sarlo, Sebald promove uma camada de temporalidades: um narrador no presente conta como quando era mais jovem acabou conhecendo pessoas que contam ao então jovem narrador suas histórias de vida, da infância e juventude. Às vezes, o narrador, mais velho, ao voltar às cidades onde moravam seus perfilados, busca novos traços de sua passagem pelo mundo e volta dali com fotografias, diários e outros sinais que compõem uma vida.

A reorganização ficcional dos relatos do cárcere é uma das formas encontradas pelo chileno Rodrigo Naranjo para compor as narrativas de “Apartados”,  lançado há duas semanas no Sesc Santos e apresentado no Porto Literário em O continente em um livro (aqui). Durante sua passada pela cidade, Naranjo falou sobre o texto que dá o título do livro, Apartados, no qual trabalha a partir do relato O inferno, de Luz Arce, jovem chilena que passa de militante de esquerda da Unidade Popular à informante do serviço secreto da ditadura e que acaba tendo papel crucial também com seus depoimentos à Comissão de Verdade e Reconciliação. O Inferno não é só seu livro, é também sua vida, e Naranjo apresenta assim sua versão do relato (a tradução é de Cristiano Moreira e Miguel A.S. Rodrigues):

“Estou sozinha diante de Deus”. Os vexames, as surras, as imersões não estão demais para a perfeição que alcancei porque agora sim, estou sozinha diante de Deus e já não há nenhuma mediação entre ele e eu. Nem a do Monsenhor, nem a do Presidente, nem a de sua Excelência, nem a de seu outro amigo, como se chama o Capitão?
Somente eu diante dele onde estamos juntos e reunidos por uma crueldade executada sem eufemismos, sem retórica, uma crueldade fria como as mãos do torturador. Desprovida de prazer, a crueldade não é filha de ninguém assim como eu, uma sala apartada, empedrada onde nos reunimos para sempre.

Haverá um parentesco filosófico ou ético entre essas obras?

Referências:
Beatriz Sarlo. Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva. Tradução Rosa Freire D’aguiar. São Paulo: Companhia das Letras; Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2007 (1ª edição 2005).

Marcelo Ariel. Tratado dos anjos afogados. Caraguatatuba: LetraSelvagem, 2008.

Roberto Bolaño. Noturno do Chile. Tradução Eduardo Brandão. São Paulo: Companhia das Letras, 2004 (1ª edição 2000).

W.G. Sebald. Os Emigrantes. Tradução de Lya Luft. Rio de Janeiro: Record, 2002 (1ª edição 1993).

Rodrigo Naranjo. Apartados. Tradução Cristiano Moreira e Miguel A. S. Rodriguez. Edição bilíngue. Navegantes / Buenos Aires: Papa Terra / Ediciones La Cebra, 2011.

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