quinta-feira, 22 de março de 2012

Alessandro Atanes, para o Porto Literário

Nas últimas semanas tenho escrito sobre livros publicados nos últimos 20 anos nos quais o testemunho e o relato pessoal recebem camadas de fabulação e ficção e como isso vem ocorrendo em temas trágicos da história recente, como a ascensão do nazismo ou as ditaduras latino-americanas. No mais diferentes entre si, identifiquei essa forma de escrita em já consagrados autores como W.G. Sebald, Roberto Bolaño e Gonçalo M. Tarares ou novos nomes como Marcelo Ariel e Rodrigo Naranjo. Seus livros têm uma linhagem.

I
Um dos mais lidos textos de Jorge Luis Borges, Kafka e seus Precursores, mostra como elementos da obra de Franz Kafka já haviam surgido na obra de autores que o antecederam. Isso não é importante no final das contas. O que interessa, nos mostra o escritor argentino, é que Kafka é quem os toma e lhes dá significado, sem o qual o rastreamento não seria possível. O que Borges nos ensina é que não existiam precursores: Kafka é quem os cria.

Antes, uma nota. Percebi agora que foi uma leitura de Borges uma das primeiras do coluna nessa empreitada de tratar de livros a defender o ficcional como forma de compreensão do mundo, não apenas ilustração dos fatos. Não faço nada inovador, apenas compartilho algumas ideias e conceitos que encontro nos textos sobre literatura de Carlo Ginzburg, Umberto Eco, Franco Moretti, Beatriz Sarlo, Luiz Costa Lima, Italo Calvino e Mario Vargas Llosa, além do próprio Borges e um ou outro clássico.

Eles estão por aí, não sabemos quem são ou
o que fizeram, mas temos a ficção contra eles


Era novembro de 2006, escrevia (aqui) sobre as discussões realizadas em torno do lançamento de As benevolentes, de Jonathan Littell, narrado em primeira pessoa por um oficial nazista, Max Aue, fugitivo após a guerra, que relembra seu papel nos fatos (outro caso como os de cima). Olha só, 2006 e os jornais discutindo se essa opção narrativa seria dar voz ou não à ideologia que moldou o personagem. Ô, atraso de discussão.

Em 1949, apenas quarto anos após o fim da Segunda Guerra (1939-1945), o mesmo Borges (1899-1986) já havia publicado em O Aleph a narrativa Deutsches Requiem, em que o narrador, nos mesmos moldes do romance de 2006, um oficial nazista, o subdiretor do campo de concentração de Tarnowitz, Otto Dietrich zur Linde, registra seu próprio epitáfio:

Os que souberem ouvir-me compreenderão a história da Alemanha e a futura história do mundo. Eu sei que casos como o meu, excepcionais e assombrosos agora, serão muito em breve triviais. Amanhã morrerei, mas sou um símbolo de gerações do futuro.

II
Após essa nota, voltemos à ideia de precursores inventados dos autores do primeiro parágrafo, da qual Deutsches Requiem certamente faz parte. Outro precursor é o próprio Kafka (1883-1924) que, em Na Colônia Penal (1919), mostra um estrangeiro em visita à prisão do título, onde um oficial lhe apresenta o funcionamento de uma máquina monstruosa que executa suas vítimas ao escrever a pena recebida com centenas de agulhas em seu corpo até a morte. O oficial responsável pela máquina lamenta ao visitante que o novo comandante da colônia não aprecie a maravilha criada por seu antecessor. Lá está outra vez, ainda que em decadência, o discurso monstruoso sendo trabalhado pela ficção para que possamos nos apropriar dos fatos, não apenas sofrê-los.

E agora eu lhe pergunto: será que por causa desse comandante e das mulheres que o influenciam deve parecer a obra de toda uma vida, como esta? – e apontou para a máquina. – Pode-se permitir uma coisa dessas, mesmo que só se esteja passando alguns dias em nossa ilha como estrangeiro? Mas não há tempo a perder, estão preparando alguma coisa contra o meu poder judicial; já se realizam reuniões de consulta no comando, para as quais não sou convocado; mesmo a visita do senhor, hoje, parece significativa da minha situação; são covardes e mandam à frente o senhor, um estrangeiro. Como era diferente a execução nos velhos tempos! Já um dia antes o vale inteiro estava superlotado de gente; todos vinham só para ver; de manhã cedo o comandante aparecia com as suas damas; as fanfarras acordavam todo o acampamento; eu fazia o anúncio de que estava tudo pronto; a sociedade – nenhum alto funcionário podia faltar – se alinhava em volta da máquina; esta pilha de cadeiras de palha é um pobre resquício daqueles tempos. A máquina, polida pouco antes, resplendia; praticamente a cada execução eu dispunha de peças novas. Diante de centenas de olhos – todos os espectadores ficavam nas pontas dos pés até aquela elevação – o condenado era posto sob o rastelo pelo próprio comandante. O que hoje um soldado raso pode fazer, era naquela época tarefa minha, presidente do tribunal, e ela me honrava. E então começava a execução!

Mais do que explicar, a narrativa de Kafka mostra, como escreve o tradutor Modesto Carone no posfácio de uma edição em conjunto com outro texto, “O Veredicto”: “Pois a verdade é que as histórias de Kafka não são explicações, mas imagens”, imagens precursoras de boa parte da boa ficção dos 100 anos seguintes.

Pós Escrito – Comissão da Ficção
Enquanto os fantasmas militares e suas fardas e fraldas da reserva seguem pressionando para que a Comissão da Verdade se transforme na Comissão da Anistia, espero que surjam no horizonte da ficção brasileira novas obras que formem a Comissão da Ficção. Enquanto a verdade é fustigada e bravatas proferidas contra a luz e o acesso a documentos, talvez os ficcionistas possam alcançar o horror destas mentes e exorcizá-los em um monumento literário aos que tombaram na luta e aos que foram assassinados pelo terror de Estado.

Referências:
Jorge Luis Borges. Deutsches Requiem. In: O Aleph. Tradução de Flávio José Cardozo. In: Obras Completas. Volume 1. São Paulo: Globo, 1998.

Franz Kafka, O veredicto / Na colônia penal. Tradução de Modesto Carone. São Paulo, Companhia das Letras, 1998.

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