terça-feira, 6 de setembro de 2011



Por Marcelo Ariel

Destaco nesta minha pequena radiografia, a poesia de Ângela Castelo Branco. Como em Arseni Tarkovski, o que vemos nela  é a busca pela tansfiguração de um sagrado que mora dentro do cotidiano, tornar visível este sagrado que pode ser visto com os olhos nús, é uma das características da poesia de Ângela. Seus poemas também procuram uma nomeação do mundo como um lugar de visitação onde uma fúria calma repousa, como um mar que dorme dentro da linguagem, sendo a água deste mar, o silêncio. Alguns poemas de Ângela, possuem a economia tensa e precisa de um epigrama e outros são Elegias que se recolhem para dentro de um pensamento-que-envolve-o-pensamento e observa as coisas da vida de um lugar que é entre o fora e o dentro, um entre, como uma porta sem trancas, feita de visão e silêncio, colocada entre o acontecimento e o evento. Abaixo seleciono alguns poemas.

SEM TÍTULO




para deixar um pássaro ao seu lado sem precisar de gaiola

basta cortar semanalmente a ponta de suas asinhas

que crescem, toda vez que o vento chama

mas tem de ser rápido,

antes que o sol sopre a lembrança do ninho



Como um corpo salgado de tanto escavar a luz

sinto que transitas

passas apressado, a folha cai

uma voz cristaliza-se na janela



SEM TÍTULO



Por aqui as abelhas vivem para tocar trombetas

abrem os ouvidos em soluços e solstícios

na procissão de flores suicidas ao mar

encontro o lugar da montanha onde a neve pára



neste aconteço de perder e achar

é bem mais perto meu lugar de risco



SEM TÍTULO



Não há pássaro que antecipe seu vôo

Peso ou medida que anuncie para onde

O que se ergue de um pouso inesperado, ergue o repouso para mais do que alto

Estranha tranqüilidade de permanecer antes do chão se abrir



ESFORÇO



Saber o tamanho de um pássaro disponível

andar sob a linha de pesca

deitar os olhos nas larvas que se enrolam

e o que se tem



Adequar o vestido para a ocasião de nascer

Nascer agora, sob uma espécie de ventania

Empurrando os mortos para os muros, murmúrios



Ócio divino do existir

Estudo as horas que se cercam de círculos

Ando com o pó de flor cingindo as ruas

e sei como duas orelhas se tocam no amor



Era por minha conta: raspar os restos de uma fome real e devolver no cio

qualquer prato de abelha quente



AULA DE POESIA 2



A arte jamais será ensinada. Arte é fricção e violência.



implantar LUGARES de VIDA COMUNITÁRIOS e produzir uma subjetividade que auto-enriqueça sua relação com o mundo.





Poesia:

acontecer do Ser

na manobra de materializar

o indizível



Poesia é fazer poesia. Não revelação nem desocultação.

E milagres acontecem. Como o único ato possível no horizonte do real.



SEM TÍTULO



Aula de Poesia

número 1:

Substituir ritmo por pulsar

Métrica por Atmosfera

e transformar virtuose em Possessão



INSTANTES QUE CABEM OU CAEM



Metáfora: Golpes espessos em vasos de barro. Eis a nova argila. Úmida lembrança de um crime perfeito. Cresce a vestimenta, roupa do espírito. Carne do imaterial. Jamais falsificar o medo.

Todas as laranjas cortadas sobre a mesa.

E eu, a descascar maçãs antes que o filme acabe.





Monolito: ovo apertado na mão. Gelado que escorre pelo canto de dentro do braço. Grade atravessada na garganta. Quadrado preto no meio da sala. O mesmo de antes, o mesmo que nunca vi.





Feito: costura de retalhos. Chão sujo de fiapos, retirar o que não é composição. Som de corte na mesa, risca de giz, alinhavar e soltar. Partir em carreira, marca do café sob o papel.

Qual o instrumento, qual o instrumento que acontece uma mulher ? Ser, até na dobra dos joelhos. Até aonde o peito voa. Ser, na mesa pequena, toalha quadriculada, no pote de manteiga, faca equilibrada e saco de pão amassado. Colecionar tentáculos. Afiar o corte da manhã. Ser, para reagir, mesmo a um custo,

Até traçar a rota e amassar as uvas:

35 doses de rum, Claire Dennis

Pai e filha, Yasujiro Ozu

Nikita, Luc Bresson

O profeta, Jacques Audiard

White material, Claire Dennis



Até estancar o fim.



Poesia: há um momento em que a vida tem um sentido insuportável: um estado de profundo excesso. O corpo ocupa o seu lugar e o campo continua guardando o sol e a noite. Lucidez depois da chuva, engrenagem nova, ligação inesperada e clara. Certa vez ganhei uma caixinha pequena com uma jóia dentro. Aquela imagem de que se guarda algo a mais do que ela mesma e por isso adquire seu último estado de beleza não me sai da cabeça. Saber que se guarda algo a mais e, no entanto, trazer em si a sobra, que se desdobra porque contém. Sobra: palavra de poesia. Estado poético e poesia: ocupação dos cantos da casa, da palavra e do corpo. Busca de pontos cegos, comprometimento com o que se vê depois da visita da verdade. Condensação, convite ao desdobramento. É sagrado porque é intermitente, entra e sai quando quer. Último passo para a fusão total, ultimo momento antes de descer rio abaixo. Aqui não habita a análise combinatória ou a arrumação de dados. Fundação. Fundição, Casa de Solda. Amálgama. Corpo gasto em outro corpo gasto. Guardião de um único sim.

Última cena do filme A Partida: escrever poesia é aquele momento exato de poder dizer: eu posso, eu posso preparar o enterro do meu próprio pai, preparei-me a vida toda para isso.

Na costura dos silêncios, recebe-se a missão de ser poeta.



Aceita-se ou não.



“tenho sido convocada

a escrever para homem só

aquele que fia as bordas do guardanapo

e guarda-os em sua gaveta

costurando dentro

a força de ser excesso”





Crença: entre crer ou não crer prefiro o Sim. Na memória do corpo o estado de ritual, o estado de sincronicidade sem ruídos. Basta o olhar encarnado que os objetos começam a falar. Seres de ver, antever, prever. Sustentar a premonição é pesado e sem fim. Geralda era benzedeira, tirava o quebranto com uma folha de arruda e fumava escondido. Raimunda era religiosa, construía pássaros e borboletas de papel para prender na gaiola. Basta um pouco de pó e sol seco. Ter a experiência de crer no corpo: detectar aonde é discurso e aonde é real. Dar banho num homem cego, velho, negro e doente, carrega-lo nos braços, entrar em sua casa à noite sem bater, não duvidar do que deve ser feito. Sujar as mãos com a vida.



Partilha real: dar adeus às teias de aranha, asas de galinha, labirintos e espelhos. Engolir a seco o escorregadio do Outro. Leitor de gravidades. Inaugurar o evento antes de nascer. Aguardar a fala profética mesmo quando a conversa não há. Pregar-se na parede, descer do muro. Não deixar ninguém no silêncio, ninguém que lá não gostaria de estar.



Potência: ousar aumentar de tamanho, sem piedade.



Olhar: não cuidar dos joelhos enquanto é o pé que está doendo. Cheirar o sangue antes que coagule.



Até o fim: não há santos, gênios nem mestres. Há homens santos, homens gênios e homens mestres. Mãos grossas de enfiar a semente em terra dura.



Devoção: construir uma estante com livros de religião ao lado dos tiroteios no deserto. Espantar a oblação. O aberto é mais do que folhas ao vento. Nada pode o guardador de sementes.



Tensão: buscar a fala do chão. Cavar o poço de uma água nova. Ver os poros se abrindo no pano de chão esgarçado. Fomentar o fogo ardente nos ossos. Cada ato bem cavado tem um ritmo, uma febre, um ponto que ressoa. Vida no talo: corpo ereto.



Métis: desejo solto na pele. O último ato. Mudar todos os ossículos do corpo. Descaminhar. Esticar a espiral. Não há outro modo de aproximar-se dela: lugar de habitar. Aqui o vento bate e transfigura-se. Esticamos o ser na próxima esquina. Fábrica de mel.





Policia do pensamento: quando o medo apaga a página, sacos de cimento pedem a voz.



Acídia: os homens padres da época medieval bebiam na hora do almoço e dormiam a tarde toda, noite adentro. Jeito simples de explicar a canseira do espírito. Vicio e seqüestro de si. Falimento, fé e alimento. Um comer por dentro.



Priapismo: colocar um lençol na janela. Escurecer o clarão do trigo. Dobrar-se como muda nova ao sol e renascer à noite, seta nas mãos do arqueiro.



Bancar: descobrir as plantas medicinais por entre o jorro das pernas. Tocar o impróprio a cada raio do eterno.



Ruminação: um extenso campo de grama e dentes que não podem caçar. Ruminar o pensamento e ficar às voltas com a superfície. Todo sonho é ato, mordida e corte.





Viveremos para sempre de um modo doméstico?



Laranjeira, pés de mamão e tomates: eu Vos nomeio.

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