segunda-feira, 5 de setembro de 2011


Por Marcelo Ariel


Uma poesia afinada com as idéias do  psicanalista e poeta Donald Winnicott , os escritos de Lucila de Jesus conseguem alcançar um equilíbrio intenso entre poemas que ligam o espanto com a beleza do mundo e o ponto e a linha de um silêncio que se interioriza, impossível separar aqui as imagens do mundo e a narrativa da vida, só havia encontrado esse tipo de abordagem antes em Anne Sexton, Hildegard Von Bingen e nos diários de Anna Akhmatóva, mas Lucila abre mão das imagens míticas em nome de códigos de linguagem capazes de ofuscar os limites entre exterior e interior, Lucila em alguns poemas se utiliza de uma coloquialidade que construída de dentro do corpo se harmoniza com  o lugar das imagens míticas, essa fala do corpo  se converte ela mesma, em linha de força do poema, que para ela continua através da luz e da cor em seus trabalhos de pintura e fotografia,o equilíbrio entre as fotos e os poemas anuncia a existência de um profundo e misteriosíssimo diálogo entre o silencioso lugar do mundo e o lugar do corpo, diálogo esse capaz de pacificar e ao mesmo tempo borrar as fronteiras entre a linha que parece separar o fora e o dentro e a linguagem escrita/falada, esse ponto oscilante da expressão, essa pequena estrela que o sol do silêncio alimenta. Uma poética que em sua abordagem da simplicidade do sagrado, me instigou a modificar minha visão do mundo e o meu próprio fazer poético.


Hilética

Tudo o que sei
sei sem saber.
Não aprendi,
só encontrei.
É que nasci
com os tendões
hiperextendidos.








muscular 


- Você está diferente...
- É que estou morando dentro do meu corpo.
- E onde morava antes?
- Entre a distensão e a distorção.







Eu também tomo conta do mundo


Segurei a menina para que não pisasse na formiga
levava o triplo de si nas costas
alimento para todo formigueiro
a carga escorregava
a pequenina se entortava para equilibrar.

Ando devagar na faixa de pedestres
para em silêncio acompanhar a senhora
em suas lentas e frágeis pisadas
até o outro lado da rua
se ela escorregar eu escoro.

Os velhos e
as formigas
são invisíveis.

Eu,
que sobrevivi,
fiquei metida. 







contorno 


Tocar a coisa dói.
Toda vez que conto um segredo perco a pele.
É terrível.
As veias ficam expostas
a qualquer contato mais bruto
vazam,
transbordam.

Nessa hora é urgente um abraço.
O corpo do outro recolhe o derramamento
coloca tudo no lugar e
milagre,
faz a pele regenerar.

Mas tem que ser em silêncio. 







Da Natureza II


Então eu,
e o ar

o compacto
pequeno e insignificante,
no incerto
espaço

o corpo começa nas fácias do crânio,
termina na planta dos pés
e ondula o infinito

ser é assim? 





Ensaio 


Sem a mulher, o homem não pode ser chamado de homem.
Sem o homem, a mulher não pode ser chamada de mulher.

Hildegard Von Bingen


Exaustos,
mas descansavam juntos

o homem comprido,
a cabeça entre os seios
da mulher macia

-sabe, me sinto como um músico estreante numa orquestra em que você é a maestra...

o moço não lembrava
que toda mulher
rege
mas também descansa
gera
mas também chora
canta
mas também dorme

e que o abraço
é o lugar
onde escutamos a grande música. 






portal 


Entre dentro
e fora

a dobradiça
do sonho

rústica
e quebrada

aguarda.






Liso


Deslizam
fugidios
córregos de desejo
entre os poros.

O beijo jorra
em cachoeira
contra o muro
no escuro.

O amor ansiado
é negro
branco
e amarelo.

Escorre,
na sombra
do dia. 





vocação 


É preciso caminhar com leveza sobre a terra.
A.    Naess

Espezinhada como formiga
assistindo o mundo
colapsar

devo decidir
trabalhar
para a continuidade

ou
desaparecer
no incompossível

Jesus e a verdade
Carvalho e a firmeza-permanente

Hidelgard e a terra

Rosa e o credo

aceito;
a mulher
em mesmidade
é devoção.






zelo 


Luz lunar
guardava
e no leito das raízes
encontrei o presente.

Lenta e docemente
tiro as fitas
o papel de seda
e dentro da caixa
envolto em plástico bolha,
fragilíssimo
coração.

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