quinta-feira, 1 de setembro de 2011


Por Marcelo Ariel

Continuando este meu mapeamento, desta vez seleciono poemas de Marceli Andresa Becker (foto),  poeta gaúcha, autora de poemas densos que dialogam com a Terra e a Natureza dentro do corpo,através de uma sensorialidade que duplica selvagemente o ' eu lírico em corpo e Corpo, corpo exteriorizado no pensamento que se dissolve no mundo e Corpo interiorizado no pensamento que se auto-investiga, como se procurasse o que está atrás do pensamento do próprio corpo, que se pensa com a mesma autonomia simples e ininteligível dos bichos e das plantas, uma poesia que desconfia da linguagem e se monta como um filme trágico dentro dos orgãos, do sangue e dos ossos, imagens que aparecem com força em alguns poemas. Marceli mais do que evocar a 'voz feminina', materializa em alguns poemas com sutileza, um profundo conflito entre um furor abstrato e a irônica visão de uma dicotomia entre a palavra e a vida. Abaixo alguns poemas dela, que selecionei de seu blog e de sites como Portal Cronópios e Revista Zunái.



QUANDO O CORPO TODO

1

quando o corpo todo,

*

túmulo vivo
de ecos, de caos,

*

sai pelo umbigo: camaleoa, a língua é corda
de um sino imenso dentro do peito.

*

como se os ossos voltassem à infância
para crescer até abrir outra vez

*

os tecidos. se já não há linhas nas palmas
das mãos, meu amor,

*

se já não temos costuras,

*

a linguagem vaza por todos os dedos: deixa que escorra
no meio das bocas, dos túneis,

*

deixa que sonhe um enxerto pra morte.

2

dá-me a noite que falece, a tua escura
escavação, e te ofereço

*

o meu Narciso ainda
de pálpebras fechadas, ainda virgem,

*

inviolado pelo espelho.

*

(mas se cantar
é cantar contra ouvido e pele, tempo de fibras,

*

mas se beleza é tu contra carne,
então cantar, cantar, pra te fazer

*

pedaços.)

3

porque te antifalar é qualquer coisa
antes das grutas.

*

há uma presa que em mim grita a tua entrega
de Adão nu, ferido,

*

feito da minha fome de costelas.

4

vê, é só perdão o que hoje em ti me pede o mundo.
é só um varal a céu aberto,

*

roupas voam
contra o vento, se confessam,

*

o que tens no coração.

HAVERIA DE DRENAR
A ESCURIDÃO DAS TUAS OLHEIRAS

haveria de drenar a escuridão das tuas olheiras
para a ideia de uma ave.
que artéria deste voo romperia
se cantasses até o fim? em que praia?
ouve, amor,
haveria de te erguer
pelos cabelos de algum poço de petróleo
e atirar a plataforma do teu rosto para o céu.



TRAZES O BARRO ENTRE AS MÃOS
SE TE APROXIMAS ASSIM


1
trazes o barro entre as mãos se te aproximas assim.
trazes a alga.

2
vem de onde a urina espessa que acumulam
as tuas pálpebras?
terçóis?

3
há quem diga que é de terços enrolados
nos teus rins de César, luzes
de natais passados,
ou dos hinos que uma escola de beatas, toda noite,
canta para os teus testículos.

4
não importa: hoje corres com fiapos de uma alga
pelos dedos, pelos cascos,

5
e relinchas como se fosse no mar a tua boca.


DO LADO DE FORA DE MIM

fosse a minha boca uma bica,
gole que a sílaba inverte,

bulímico,
não uma outra buceta,
que sorve, que suga
a sua própria saída,

eu te diria, acredita, do lado de fora de mim.



SEM TÍTULO

Quoth the Raven, `Nevermore`”
Edgar Allan Poe (The raven)


que corpo têm os mortos? que pés?
batem suas cabeças de pingente em queda
– ouve o grito que rebenta
a gargantilha das palavras na garganta –
contra o quê?
há duas moscas-varejeiras que falecem dos seus olhos:
são estrelas que outro céu chama cadentes.

anda, faz nenhum pedido.



SEM TÍTULO

duas e vinte da manhã.
tento dormir, em vão,
porque há torneiras que aguardo que feches
e maçanetas que tens de torcer.

faltem-me lágrima e muco, será,
para engraxar as roldanas que te levantam
dos meus pulmões?

(como se em algum lugar ainda houvesse saída.)
será que aguentam as tranças,
tendões de mel e placenta,
se eu atirar a tua escrita do ombro até os dedos?

(como se ainda eu pudesse mover algum pulso.)
é que tu pesas por vezes
todas as horas de ti.

tento deitar, meu amor,
uma vez mais,

porque é possível que o barro
com que moldaste berrantes no meu coração
(um par de átrios e de ventrículos)

se desintegre no sonho.




SEI DE ÍNGUAS QUE REBENTAM

sei de ínguas que rebentam
como um gêiser na garganta.

(soa o alarme das amígdalas!)

como esqueces que há febre na tua fala
e que tu tens de abrir a boca enquanto é tempo?

cospe em tua musa, em tua harpa,
ateia fogo em teu outro inflamável.





A MULHER MEXE NA TERRA

1
a mulher mexe na terra.

*

lâmina-lua
corta o barbante que lhe prende as mãos.

*
dez pás ao todo, unhas
compridas,

*

consegue ouvir? o sangue rompe
a cisterna dos dedos

*

na campainha.


2

todas as portas lá fora
dão para ela.

*

durante o resto da vida
perguntará a si mesma: quem fixou

*

deste jeito as três dobradiças?

*

(boca, buceta e cu).


3

um morto à espera: todo
olho é mágico.

*

chamam-lhe ave que virou pra dentro
os holofotes imensos do rosto.


4

em breve ela atenderá.



8 comentários:

  1. Maravilhosa!

    Bela proposta deste site. Encantada!

    Um abraço!

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  2. mar é uma grata surpresa da poesia contemporânea.
    daquelas que produzem um silêncio incômodo dentro de nós...

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  3. Fiqeui perplexa com a qualidade da poesia desta moça gaúcha. Obrigada aos editores do blog pelo trabalho de encontrá-la para nós.

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  4. Mar é excelente. Tem mesmo uma poesia de chamar a atenção. Gosto muito.

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