segunda-feira, 15 de agosto de 2011

Fragmentos de Desmemórias, poesia de Diniz Gonçalves Júnior 

Capa de "Decalques" (2009), primeiro livro do poeta
Capa de Decalques (2009), primeiro livro do poeta, leia resenha aqui

I
a chuva distorcia imagem do vídeo que era precária lentidão de um dia vazio na ana costa depois da faixa divisória não tinha registro magnético neblineava vista ilhada da cabine telefônica não era sorveteria desabitada nem o caminho para subir até o mirante depois da ladeira da ilha porchat
II
panorama de luzes formadas no asfalto atrito de alguma estação fm  depois das duas com direito a voz cavernosa e pedidos ao cvv nem os detritos que lotavam o pára-brisa escondiam a fisionomia do tédio engessado  da falta de sentido daquele feriado mas apropriado seria o chá com fantasmas de quintana servido à moda da casa

III
catava pedaços de papel no chão formando filigranas de bonsais que construía mentalmente nenhum aviãozinho quase grafite que esboçasse vôo as pastilhas do edifício evaporavam histórias  das folhinhas guardadas na véspera .

IV
dia de lua em santos dois aquários próximos mas tão impossíveis na claustrofobia da ausência rua artur assis  54  o quadro do baile de máscaras  apartamento final do corredor à esquerda.

V
uma outra vida amigo os velhos discos da loja são  miniaturas engarrafadas limiares de um tempo  que corre paralelo memória de mochilas e perfume pathchouly não há notícias de  lá  só  as delícias da casa azul gosto de infância inventada perto do atrito do trem estação final mogi .

VI
fechou meus olhos na saída da loft  não sabia seu nome  era leve como aquelas bolhas de sabão que aparecem no mês de janeiro  efêmeras cores  de mil novecentos e oitenta e pouco

VII
nada naquela noite fria meia dúzia de gaiatos pingados olhando pra praça um cheiro enjoado  de damas da noite uma garrafa quebrada  duas ou três garotas espiando da janela.

VIII
a cidade escondia  cicatrizes  passagens secretas para shangri-la bilhetes de destinos imprevistos ruído de violino desafinado um cheiro de jornais  molhados  retratos  de máquinas descartáveis uma menina levando flores de plástico

IX
desenhos de navios na areia  meninas cítricas na arrebentação do cais  insolação  marítima  planos evaporados no posto 5

X
um frasco de sol  discos de vinil  na prateleira do eldorado papel de parede colado ao contrário dias guardados nas listras  do sofá-cama .

XI
no gonzaga  teias de galerias povoam  a noite  varal de vagalumes iluminando os  letreiros.

XII
recolhia as roupas como se habitasse um museu de mímicos e a memória fosse  um ato mecânico seqüência de slides apagando- se distraidamente . 

XIII
avistei altiplanos na canção trastevere  a cidade é moderna e traduz  sua geometria em pequenas maquetes de ar enquanto as serpentinas reciclam as folias de outros carnavais as marchinhas nunca ouviram  trastevere e cismam em  romper a noite espalhando  lamentos em  alta freqüência

XIV
em tempos diversos voltas ao redor da estátua de vicente de carvalho  se fosse hoje não seria  bronze mas artifício holograma  nada sólido como uma medula de pedra .  

XV
entre galerias misturando  os nomes das lojas como se fossem quebra-cabeças de pernas pro ar  

XVI
fachadas anônimas cores extintas no enxame de ruas centro velho ilhado nas margens das placas de trânsito

XVII
era o clube sírio e os cheiros de serpentina na fila pernas e máscaras euforia cílios  cenário embalsamado

XVIII
cada ano um mapa  inventa letra lembrança lugares contar os números das cartelas acumuladas

XIX
três horas o caminho em breve será  memória a fala hesita  flores impossíveis calam a madrugada  

XX
galeria borba gato e o descompromisso dos caminhos talvez uma pintura desbotada pelos passos discos  vitrines de passagem .

XXI
esse jardim improvável  mínimo istmo beirando o concreto retrato dos silos onde deitei a memória .

XXII
não foi possível apesar do sorriso e do caminho que passa sonolento pelo parque antigo até chegar à radial leste .

XXIII
toda rua tem memória  letras embaralhadas no retrovisor caminhos habituais se tornam raros mesmo que permaneçam como certos cheiros  imagens  sons do asfalto

XXIV
no rádio tocava all for reason e o guarujá indicava possibilidades  tantos olhares na beira do mar e a noite refletida na arquitetura veloz dos carros e nada atrapalhava o dolce far niente o ritmo lento das pernas das meninas atravessando o tempo como quem inaugura monumentos de vento ao passar .

XXV
menina no ponto de ônibus  ajeita  tiara círculo com luzes precárias anuncia loja de materiais elétricos restaurante árabe  promoções em letras gigantes caminho setas para centro .

XXVI
a cidade pausa movimentos natalinos vermelho repetido fulgor de luzes algo fora do bom tom slow motion das faces apressadas risonhas como bonecos com data de validade

XXVII
verão tímido cidade coberta pela chuva calçadas vazias na paulista cinema feliz natal imagens claustrofóbicas inundam a retina escadas galeria estranha a volta subterrânea olhares contam as estações

XXVIII
banzo de janeiro  ar salgado conserva lembranças de verões diversos  passos rápidos atravesso ruas canais  dissolvidos no sol   as casas passam numa  monotonia de cores claras  o relógio da avenida anuncia a falta de pressa das horas

XIX
os objetos da casa minérios da memória o ano que não volta os risos e passos o barulho dos carros o jardim mínimo os porta- retratos guardar as palavras a alegria o movimento da rua o cheiro de hortelã o baú que não está mais lá o espaço aventado o muro e a  cor amarela que imita o sol

XXX
paranapiacaba cabanas fraturam a serrania nervos de ferro dos comboios ferrorama em tamanho natural dos campos de charles miller aos trens que rangem longe das gerais

XXXI
a memória é sílaba de pássaros canto que recolhe cápsulas de asfalto relicário de ruas interditadas arame das águas inunda o meio-fio 

XXXII
que a chuva lave aquilo que vela fotos reveladas nos silos de chumbo depois da quarta camada de areia desaparece o traço do navio resta a lembrança da imagem que insiste em refazer as margens dos dias expulsos do calendário

XXXIII
os vidros de areia hibernam nas prateleiras  museu de pesca de santo  praias próximas e distantes  brancas ou opacas  protegidas do tempo que faz lá fora já foram castelos e esconderam concha arranharam os olhos nas brincadeiras de infância  refletiram navios nas noites brancas guardaram os passos apagados da memória .

XXXIV
socorro rumo grajaú calor a pino avenida teotônio vilela centro comercial muita gente viro à direita rua dumont passeio monza do luis balsa beira da billings ilha do bororé casas vendendo peixe obra gigante cimento do rodoanel volta almoço caseiro  dona jandira seu santório  trajes elegantes para as bodas de fon e soraya interlagos sol interdita ameaça de chuva padrinhos capo alexandre vivian veludo vermelho edgar terno e tênis presente daniele quebra-nozes fotos padre oriental destino natal dias solares

XXXV
fuga da chuva  pôsteres de cinema  depois de strombolli  verão violento respira na galeria

XXXVI
no corredor o vidro esquadrinha  mar regata sol  telefones nas cabines margem areia escotilha do cinema de arte que parece um submarino encalhado no calçadão

XXXVII
O globo colorido reflete as luzes dos piratas de plástico bônus reinicie a partida no átimo a ficha engole segundos outra paisagem apache tece recordes da vida ao limite tilt

XXXVIII
vento morno ondula os desenhos do calçadão silhueta de navios de partida a noite cai no cais de mim

XIL
noite  o chuveiro silencia estranha escultura no canteiro xadrez de concreto no limite da areia  antídoto do sol dorme de costas para o mar

XL
canal vazio notas de desembarque aviso de chuva o caminho retorna nos mapas da ausência

XLI
pátio azul silêncio sólido solene madeira colégio paz rezas irmã inês e o tempo fraturado  fora do  calendário

XLII
linhas de uma  rua embaralham números datas arrancadas da memória na placa  fonseca da costa mais um gol antes do carro passar e as
matinês distantes da up & down  encontro eco de portas e largos corredores na beira da piscina do ybiá   o sol derrete os sorvetes numa esquina da enseada que não volta risadas no salão do prédio  miragem  nome  tinge camiseta vermelha improvisos odes telas de néon desbotadas josé menino o prédio adormece seu sono de concha seus segredos guardados na margem da areia .

XLII
balneário flórida bicicleta enferruja no quarto do fundo  conchas na moldura da churrasqueira quintal quarto quente concreto das prateleiras o ventilador de ferro que ainda funciona rua das camélias a chuva precipita no asfalto quase vazio equação do sono no ócio da tarde o mar desolado rebenta lento e os quiosques fincados no calçadão  sentido mongaguá ou boqueirão soletrando paisagens habituais e as bugigangas coloridas das feirinhas precárias talvez um chaveiro ou nome  entalhado num totem de madeira

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