sábado, 2 de outubro de 2010

Alessandro Atanes


I Literatura e viagem
Joca Reiners Terron e João Paulo Cuenca dividiram o primeiro encontro da segunda edição da Tarrafa Literária, que aconteceu em Santos entre 22 e 26 de setembro. O tema que coube aos dois foi Amores Impressos, referência à série Amores Expressos, pela qual 17 escritores foram convidados a ficar a viajar para uma cidade durante um mês e depois escrever uma história de amor tendo a dita por cenário. A Terron coube o Cairo, no Egito; Cuenca ficou com Tóquio, Japão.

Terron lembrou que toda viagem, mesmo sem o objetivo do projeto, hora ou outra acaba em ficção: temos que contá-la, às vezes repetidamente, a parentes, amigos e, no caso da Tarrafa, ao público. Ainda que não inventemos nada, não se discute o caráter de fabulação das histórias de viagem, tanto que muitos consideram os relatos de viajantes um gênero literário.

Ele lembrou do filósofo Walter Benjamim, que disse uma vez que a melhor forma de conhecer uma cidade é se perdendo nela. Foi o que o autor fez no Cairo, de onde não parece sentir muitas saudades: “Me perdi completamente”. Uma esquina do mundo, Cairo pareceu ao autor “um fantasma europeu na África”. O resultado foi o livro Do fundo do poço se vê a lua e sua passagem pelo Cairo pode ser acompanhada no blog da viagem.

Cuenca, cuja viagem resultou no livro O único final feliz para uma história de amor é um acidente, e Terron dividiram suas experiências nas duas cidades e falaram sobre o processo criativo para a realização de seus livros. Pena que o mediador Arthur Veríssimo, repórter da Trip e também viajante, mais interrompeu que mediou os convidados, travando um pouco a conversa.

II Monstros
No mesmo dia 23 (no dia 22 foi a abertura com show de Tom Zé), Zuenir Ventura e Luis Fernando Veríssimo se reuniram com o tema Tempo de Conversa, alusão a Conversa sobre o tempo, livro em que os dois tratam de uma série de temas, amizade, amor, sexo, política, literatura, mediados por Arthur Dapieve, que também comandou a mesa da Tarrafa.

Os dois são monstros sagrados das letras brasileiras: 1968: o ano que não terminou, livro-reportagem de Ventura, é responsável pela formação de toda uma geração que era muito nova para ter testemunhado os anos da ditadura. Veríssimo é um caso de alta sofisticação na imprensa nacional, sua série “Poesia numa hora dessa” é uma afirmação da importância da literatura para o cotidiano das pessoas. A mesa não funcionou: talvez os dois já estejam cansados de promover o livro (porque é de mercado editorial que se tratam os festivais literários), não sei, mas ficar ouvindo o caso da perda de virgindade de Ventura com uma viúva ou a tentativa frustrada de Veríssimo de namorar em um carrão que acabou num chafariz são coisas difíceis de aguentar.

III A mais pura verdade
No dia seguinte a coisa foi outra. Na mesa Ficção: a mais pura verdade, com Maria Valéria Rezende e Cíntia Moscovich, mediadas pelo crítico Manuel da Costa Pinto, o papo foi literatura. A biografia das duas escritores só serviu para iluminar o público sobre aspectos de sua formação literária e do trajeto intelectual de cada uma. A gaúcha Moscovich foi direto ao ponto: “A vida da gente é muito pouco interessante. A gente é muito corriqueiro”. Sobre a relação entre ficção e os fatos biográfico, ela pergunta: “Quanto é teu daquilo que tu conta?”.

Maria Valéria Rezende completou dizendo que o real é pouco (“temos que multiplicar os reais”) e que a ficção está distante da briga entre verdade e mentira: “o contrário da mentira não é a verdade, é a sinceridade”. Para ela, escrever ficção é ver as coisas com estranhamento, é “tentar entender se pondo no lugar do outro por meio de histórias” e que seu primeiro livro, Vasto Mundo (resenha aqui), é uma prestação de contas deste aprendizado.

III Guerra
João Barone (esse mesmo, o baterista do Paralamas do Sucesso) e Roberto Muylaert comprovaram como as guerras são fontes incessantes de relatos. Barone desenvolveu interesse pelo assunto por causa das histórias que ouviu de seu pai, soldado que esteve na Itália alistado nas Forças Expedicionárias Brasileiras. Caçula de quatro irmãos, conta que ouviu uma história “já preparada”, ouvida anteriormente pelos mais velhos (o que lembra a afirmação de Terron), que acabou alimentada por filmes, documentários e séries de televisão sobre o assunto. Dali saiu o livro A minha segunda guerra, na qual relata sua participação – em um jipe militar de sua coleção – nas celebrações do 60º aniversário do Dia D.

Muylaert usou suas próprias memórias de infância para compor partes de Alarm!, história que tem como protagonista um descendente de alemães nascido em Blumenau, Santa Catarina, que acaba se alistando na marinha nazista e, após levar a pique alguns navios no Atlântico Norte, acaba guiando um submarino até as praias do litoral de São Paulo, onde, em 1938, antes do Brasil entrar na Segunda Guerra, ele e alguns de seus companheiros da tripulação acabam tomando cachaça no Hotel dos Alemães na Praia Grande.

IV Literatura X mercado editorial
Dois pensadores se encontraram na mesa que fechou o evento: o camaronês Celestin Mongá e o brasileiro José Miguel Wisnik, que compuseram a mesa África e Brasil – culturas e Ritmos, mediada por Estela Abreu, tradutora de Mongá no Brasil e destaque da primeira edição da Tarrafa.

Parecia uma aula, mas uma daquelas boas mesmo, que fazem calar aqueles que não conhecem a academia, que dizem que literatura é só entretenimento. Mongá apresentou seu livro capítulo por capítulo, destruiu uma série de estereótipos sobre o continente e afirmou a autonomia de povos que não querem ser vistos apenas pela dupla lente de coitadinhos ou selvagens.

Wisnik deu uma mostra do que são suas aulas nos cursos de Letras da USP e, ao invés de promover seu próprio livro, fez uma série de reflexões sobre os ensaios de Mongá, apresentando pontos-chave de seu pensamento, fazendo correlações entre questões culturais e de identidades e até inserindo um conto de Clarice Lispector para ilustrar situações descritas no livro de Mongá, Niilismo e negritude – as artes de viver na África. Diversão pura, não entretenimento.

Pós Tarrafa
Em texto sobre a Tarrafa do ano passado, criticava a ausência de nomes que produzem literatura em Santos e na Baixada Santista, o que voltou a ocorrer na segunda edição (Maria Valéria Rezende nasceu em Santos, Wisnik em São Vicente, mas a vida deles não é aqui). Não é o caso de tirar grandes nomes da literatura nacional (seja isso o que for) para substituí-los por nomes daqui. Poderia ser algo paralelo, complementar, mas o fato é que a Tarrafa Literária optou por não ser uma vitrine da literatura produzida na cidade. E não falo só dos nomes contemporâneos (não vou citar nomes, que tenho amigos entre eles), Santos tem uma história literária. Para os que acham, como eu, que foi uma oportunidade perdida, o negócio é reunir escritores e intelectuais da cidade e da região para outro tipo de encontro literário, complementar à Tarrafa, unindo forças na criação de espaços onde a criação literária feita a partir daqui possa ter sua própria vitrine.

Isso foi o que um evento literário criado por uma livraria que é também editora não achou necessário fazer, mas talvez já tenha feito muito e eu que estou sendo injusto.

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