terça-feira, 28 de setembro de 2010

Um conto de Flávio Viegas Amoreira


Esquina da Rua Bela Cintra com a Avenida Paulista, em imagem de Guilherme Gaensly (1911)

Sempre oscilei entre Aschenbach ou Verlaine na busca da Beleza recheada de espírito. Sei o trabalho que um belo rapaz dá a estabilidade dum homem que luta para não sucumbir. Um escritor precisa de uma saudável solitude para criar: mas confesso não resistir quando surge um Tadzio ou um Rimbaud nessa gangorra de vida. Não pretendia morrer pateticamente em Veneza, pegar dois anos em cana por atirar num poeta ou pior! me sentir Norma Desmond maravilhosamente ensandecida num Sunset Boulevard da Baixa Augusta. Conheci Gael cortando a Alameda Campinas, era uma manhã fria de julho: perdi-o de vista, mas reencontrei lendo a mesma biografia de Jean Genet que carregava para terminar meu Manual do Gay Cult.

Passando dos 40 anos, sem mais temores de rejeição, era a senha para abordá-lo e convidar sentar a minha mesa num bar de rua da Bela Cintra. De Genet pulamos logo para Fassbinder e mesma idolatria por Jeanne Moreau. Ele tinha visto O tempo que resta as mesmas 4 vezes que eu: até a chegada do DVD redentor que nos uniria para sempre sob as bênçãos de François Ozon. Meu apartamento era uma caverna por onde os livros subiam ou pendiam feito estalactites e estalagmites: Gael, estudante de cinema, 22 anos era claro e etéreo como se um daqueles nadadores de sunga prestes mergulhar em nosso destino numa tela de David Hockney. Liguei o som e ele logo reconheceu Goldberg Variations tocada por Glenn Gould: eu em êxtase, era o tesão do corpo perpassando para tesão da alma. Notei como parecia o ator dirigido por Tom Ford: um aluno deliciosamente loirinho que Colin Firth deixou casto para sair ileso. O amor é um risco bom, Gael enlanguescia feito um gato sabendo ter me dominado: a Beleza é de uma terrível e sutil arrogância para quem possui e um sucumbir trágico para quem sucumbe.

Um jovem belo e talentoso seria uma bomba de efeito retardado: mas pago o preço por ser eu também dinamite. Abri um vinho: meu fetiche era ouvir Mahler com ele despido: o contraste entre sua frágil nudez e o domínio sobre um sátiro fazia dele um continente ser conquistado sem nenhum GPS que me conduzisse. Mamilos, pêlos pubianos e as coxas me convidando para retomar meu karma de ter sido senador romano. Gael me ganhou primeiro pelo encanto, depois tornou-se obsessão, um fetiche andante.

Convivemos por três meses, ele também morando na mesma ladeira onde ia ruminando meus descaminhos: a felicidade pesa quando a idealização se realiza além do intuído. Pressentia-o existindo mesmo antes de ter achado, na busca é que nos perdemos: sabia-o, mas os 23 anos que nos separavam pesavam como todos os dias que vivi e ele era só quimera.

Gael era uma liberdade nos olhos que o mundo pedia, eu era a própria clausura partilhada: impossível conviver sem fazer concessões: era tudo para mim, mas esse tudo ainda era pouco diante do tanto que ele recebia.

O ápice dum horizonte sem nuvens também é o prenúncio silencioso de emoções em tsunami. Ele começou como estímulo: escrevia vendo-o feito Caravaggio dormindo num domingo chuvoso. Agora era o tormento do desgaste: eu também notara ser Gael familiar; existe algo que diz onde pisamos pela segunda vez mesmo sem consciência. No dia da despedida, separando fotografias, abri minha gaveta de guardados. A ruptura foi consensual para não per patética: jantamos e falei de meus amores: agora mesmo ele também se tornaria um inventário afetivo. Cerrando sua face densa agora feito um Montgomery Clift, vi-o amadurecer decênios!

Ele reconhecera Lúcio: um companheiro que voltara 20 anos antes enfermo da Espanha e de quem não tive coragem de visitar para um réquiem íntimo no Emílio Ribas. Lúcio voltara em forma de livros recolhidos, Nina Simone em meus ouvidos e Gael, seu sobrinho partindo enquanto espreitava-o como passado revivido em forma de adágio lento de que ainda tento curar na estúpida hipótese de seu retorno...

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