quinta-feira, 8 de julho de 2010

Márcia Costa, para o Jornal da Orla

O que Patrícia Galvão acharia do mundo se estivesse entre nós agora, quando se comemora o centenário de seu nascimento? A jornalista Márcia Costa aceitou o desafio e “psicografou” o texto abaixo, no qual especula o que —e como— a musa do modernismo falaria dos dias atuais.

Nosso mundo cabe nas manchetes do dia: enchentes no ainda frágil Nordeste ao lado do exagero futebolístico; as novas/velhas promessas dos candidatos e o espetáculo por todos os lados. É a sociedade hipermoderna, do moderno levado às últimas consequências - a extinção do trema é também um sintoma da hipermodernidade.

As TVs não cansam de mostrar o encanto desta África que recebe pela primeira vez a Copa do Mundo. Mas li essa semana no "Le Monde" - que foi vendido - que lá estão longe de ser alcançados os Objetivos do Milênio,
pois o mundo ainda pensa e quer educação básica para todos, igualdade entre os sexos, redução da mortalidade das crianças e das mães, a contenção da Aids e o desenvolvimento sustentável (expressão que, já
notei, vem servindo a vários discursos -atenção!).

Intelectuais explicam a sociedade nesta situação paradoxal dividida de modo quase esquizofrênico entre cultura do excesso e elogio da moderação. Parece ser o mandamento atual: ser mais moderno que o moderno, mais jovem que o jovem, estar mais na moda do que a própria moda.

As coisas estão mais confusas que nunca. O trabalho escravo permanece - até na Pauliceia Desvairada que atrai bolivianos para trabalhos forçados em fábricas piores das que descrevi em Parque Industrial, ainda que São Paulo seja um laboratório de inovação artística e social.

A pressão ambiental nos incita a uma nova forma de convivência; as conquistas da afetividade são cada vez mais presentes, como evidencia o arco-íris da Avenida Paulista e da Barraca da Cris em São Vicente, enquanto a Santos que me acolheu não abre seus armários. Ah, cidade sintoma da hipermodernidade, em sua esquizofrenia entre Barcelona e Miami, entre a preservação do Patrimônio e a especulação imobiliária, entre o Povo e o Polvo.

Parece haver ambivalência e velocidade em tudo o que vivemos. Otimista, prefiro, como Sartre (impossível não citar), olhar positivamente para as possibilidades. Filha da modernidade, descartei a utopia política, mas venho escrevendo desde a década de 40 que a esperança está na arte, na cultura e no conhecimento. Como o futebol, eles têm chance de promover a integração humana.

Nunca foi tão fácil produzir e se reunir, nem que seja de forma remota: hoje blogamos, retuitamos e nos encontramos nas redes sociais. Vivemos tempos glocais (local + global), em que as ações coletivas ganham dimensão e força. Esta facilidade de comunicação permite que a arte alce altos e longos voos (adeus, circunflexo do primeiro o, mas adeus sem tristeza, que é tua hora). Hoje jovens militantes das mais diversas causas se unem e artistas se mostram on line sem precisar dos velhos mediadores.

Por isso, caro leitor, mergulhe no vasto mar da internet e veja quadros e fotografias, mexa nas instalações, ouça música e acompanhe coreografias, leia e vá sim ao teatro. O teatro é uma escola. Ele ensina e fixa a linguagem, ensina a ver cenários, gestos e roupas, recria, diverte e nos ajuda com os problemas da vida... mas quem hoje apoia (mais um acento que se foi...) o novo teatro e os novos artistas?

É difícil viver em um ambiente que não estimula a cultura. O remédio, aos que sentem "inquietações de inteligência", como falava Lima Barreto, é exilar-se, amargar o pão do estrangeiro; ou ficar por aqui mesmo e lutar. Nós ficamos. E lutamos enquanto for possível, porque a arte nos torna seres humanos melhores e mais justos.

Ionesco dizia que fazer um mundo nosso é exigência do espírito pois o contrário nos levaria à asfixia. Do modernismo antropofágico, do qual me fizeram musa, às agruras da hipermodernidade, devemos buscar sempre liberdade, inquietação, justiça e emancipação. Buscar beleza diante de tantos horrores que acompanhamos diariamente. Sim, esperamos mais poesia e menos guerra e catástrofes, outras atitudes, novos gestos. É a vida que flui, a arte que permanece, e entre o que passa e o que fica, os homens traçam sua a sua grandeza e a sua dignidade.

Aqui estamos, amigos, olhos postos no horizonte, nesta praia de esperança.



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