terça-feira, 4 de maio de 2010

Alessandro Atanes, para o PortoGente


Dizem alguns estudiosos que o problema da violência nos centros urbanos, além de surtos como o da semana passada, está mais na sensação de violência do que no real perigo que nos ronda. É só comparar o noticiário com o que realmente testemunhamos andando de ônibus, indo para o trabalho ou escola, passeando com a namorada, com amigos ou a família. Enfim, o que quero dizer é que há um intervalo entre o que nos contam e o que realmente vemos, um espaço que acaba ocupado por boatos, sensacionalismos jornalísticos ou orientações de consulado.

Aproveitando o gancho, trato hoje de como a violência urbana em nossa região é filtrada por outra forma de relato que, ao contrário dos três acima, não aspira à verdade e, por causa mesmo disso, não precisa espernear: é a ficção de Marcelo Ariel, o profeta da Baixada Santista pós-industrial, autor de Jardim Costa e Silva-Cubatão, poema do livro Tratado dos anjos afogados que envolve assassinatos entre traficantes:

No meio de um eclipse
(da memória)
O Sol
(Um traficante morto nos anos 80)
pergunta as horas
para meu irmão louco,
enche um copo de Vinho
Sangue-de-boi.

Na esquina às três da manhã
mostro para ele
um disco do The Who
Quem?

É o nome da banda
eu digo
ele ouve no meio do deserto,
amanhã
Draculino
(outro traficante)
dará um encontrão no Sol dentro
de um supermercado
na seção de biscoitos
motivando talvez
‘o oco’ de um boato ou assassinato,
meses depois
o Sol na UTI
vai para o fundo
do mar escuro.

Para comemorar
o delegado
oferece um copo de conhaque
para o avião da morte
e olha para mim
pensando em nada,
Draculino é preso
ainda dando as cartas,
antes de ir dormir

(Jogando buraco)
continuem esse jogo,
ele diz...

(Depois no pau de arara reza:

Porra, não fui eu que matei o Sol, foram os homens.)

Draculino é solto
passa na rua e reza de novo para o ar:

É a maior injustiça... o Sol morto e
os homens vivos.

Não se trata aqui – e repito algo que já escrevi sobre Marcelo Ariel – de apontar conteúdos de denúncia social em sua poesia. A poética do autor criado em Cubatão é forjada entre o desastre de Vila Socó, o desemprego industrial e a ocupação dos espaços marginalizados pelos comandos criminosos, isto é, ela se fez entre a violência industrial, social e criminal, mas segue sendo poética acima de tudo. É sua linguagem simbólica, bem mais do que qualquer matéria jornalística, que tira a violência de nossa ilha (ah, Baixada que além do horizonte ou acima da Serra nada vê que não seja pela televisão) e a transforma em violência do mundo, como em Carandiru Geral:

Uma molécula do Hades
habitada
por fantasmas
incontados
aqui estão
na escola dos ex-kamikases,
a mente convertida em bala
o olho em faca
todos gado
80 numa sela para 30
“vivem” duas horas por dia cada
na lei do silêncio
defendem
o direito quântico de matar
por nada

lá fora
o insolúvel
na hora errada
alimenta as células dos comandos
(o medo de mãos dadas com a Besta Assistencial)
ali num outro canto
o Poeta Hélio
preso com uma camisa do PT
por ter ido buscar coca na esquina
o inferno dele
nada para ler
ou escrever
ao seu lado
um anjo caído de três cabeças
oferece um cigarro
o nome do anjo:
PCC
‘um dia todos os comandos vão se unir e dominar geral’
diz uma das cabeças
‘pode ser a revolução’
diz o poeta depois
ao me encontrar
num bar
fora da prisão-Styx
‘lá a degolação é a tese e a matança é o processo,
a contabilidade é um degolado por noite’

Aqui eles têm tempo...
‘o problema é o espaço’
conosco é o inverso...
(O outro comando, o da lei ouve a voz pífia
do Poder ordenando a transferência do terror)

Em toda a parte Hamurabi é o Senhor
suicidado o Poeta troca a cela por um bar
e silencia...

Na cela esquecida o degolado ria
quando era um cadáver vivo
agora no presídio abandonado
(futuro centro cultural?)

A cabeça degolada é a flor do mal.

Vale uma tese, não?

Referência:
Marcelo Ariel. Tratado dos anjos afogados. Caraguatatuba: LetraSelvagem, 2008.



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