terça-feira, 25 de maio de 2010

Flávio Viegas Amoreira

A Arte que apreciamos demais é quase sempre reflexo do que somos.

Assisti O Direito de Amar, título tolo para obra-prima de Tom Ford, quatro vezes: para ver, decodificar seus símbolos e entrar em sua atmosfera. Uma fita que como um poema pede ser absorvido por todos os sentidos; nos fala de temas fundamentais como amor, perda e sentido para seres sensíveis demais que se insulam afastando-se mar adentro apartados dum mundo que se torna para eles um continente bruto. Toda trajetória dum homem no seu último dia de vida: tudo contado por gente linda e culta. Existe Paraíso maior na Terra que o encontro da Beleza com a Inteligência, mesmo com o travo da dor? Beleza e saber deveriam andar sempre juntos.

Tom Ford nos dá essa ética "cult" com estetização da complexidade. O diretor é um dos mais glamourosos estilistas americanos, o protagonista, meu ator contemporâneo favorito, Colin Firth, inglês obviamente e o enredo brilhantemente adaptado de Christopher Isherwood, um escritor sofisticadíssimo. Logicamente que não se encaixaria aos patetas em sua maioria premiados com o Oscar: The Single Man, nome original desse tratado sobre a "intransferibilidade" de nossos sentimentos, é para um público cada vez mais seleto: os que pensam e sentem profundo.

Na Europa ainda resistindo culturalmente a fita foi reconhecida imensa! "Ninguém te devolverá o tempo passado, ninguém te fará voltar a ti próprio", essa frase de Sêneca e "O desespero humano" de Kierkegaard me vieram logo a mente quando saí em êxtase: carregando pela Rua Augusta o oceano de sensações mal desprendidas provocadas por cenas que ainda ouço ao som de Etta James comigo. Estóico, existencialista, O Direito de Amar põe em xeque certezas de pessoas "bem-resolvidas", questiona muito o dever da alegria e não faz concessão a qualquer ilusão que nos torne menos atormentados ao raiar de cada dia. Amar é um risco bom, mas nos cobra sérios acertos de contas com a finitude e os momentos sem volta que a maturidade nos suscita. O uso das cores, o mar como elemento decisivo em nosso debruçar com encantamentos e abismos, toda sorte de sutileza é somada ao momento de transição histórica da narrativa e certo maneirismo evocando Visconti nos soberbos Morte em Veneza ou Violência e Paixão.

A homoafetividade é tratada com dignidade ímpar: Tom Ford mostra  que ser gay não é necessariamente ser "pra cima". Juliane Moore é um caso sério de talento e adequação em papéis de mulheres resignadas a contragosto: altura de Gloria Swanson. Sorte o público santista poder rever no Posto 4 esse clássico de minha antologia personalíssima:  recomendo com veemência sem erro para os cinéfilos de fino trato e com mente ampla. A vida como uma carta enviada por remetente incógnito para endereço desconhecido, com trechos que iluminem ainda que com enigmático entendimento por ausência de desfecho. Um filme que me faz refletir mais do que já penso, é para ser repartido: poetas, somos deliciosamente "condenados" à generosidade.

Mas ninguém sente o mundo pelos outros. "Ao contrário da alegria, a dor não usa máscara" - diz Oscar Wilde em De Profundis, meu evangelho laico. A humanidade desacostumou de pensar para não sofrer e nega o sofrimento para não pensar. Como pode um estilista milionário ainda ser capaz de ser brilhante no cinema? Porque disse ter se cansado do efêmero. Metáfora de nossos tempos: tão triste e belo.
 

0 comentários:

Postar um comentário

Os comentários ao blog serão publicados desde que sejam assinados e não tenham conteúdo ofensivo.