terça-feira, 9 de março de 2010

Alessandro Atanes, para o PortoGente

Volto ao escritor chileno Roberto Bolaño (1953-2003), mais precisamente ao romance Os detetives selvagens (1998). Em texto de 13 de maio de 2008 havia destacado um episódio de duelos verbais entre três poetas e uma prostituta que cruzam o deserto de Sonora em um Ford Impala.


Capa da edição brasileira

É uma cena da terceira parte do romance em que noto uma simetria entre o código erudito e o código das ruas: primeiro García Madero, o narrador, desafia os demais com uma série de perguntas que poucas vezes conseguem resposta, surgem termos como hápax, hemíepes, mimiambo, homeoteleuto e zejel; depois é a vez de Lupe tomar a voz e começar a perguntar sobre prix, carranza, lurias, jincho, dar labiada.

Entre os dois, Arturo Belano e Ulises Lima, os detetives selvagens do título, respondem muito pouco sobre métrica, funções e temas poéticos, bem como a uma ou outra pergunta de Lupe. Da mesmo forma que nos duelos verbais, tudo no livro gira em torno dos dois: a criação do grupo de vanguarda real-visceralistas da primeira parte e os depoimentos da segunda, além da cruzada por Sonora que encerra a história.

O livro foi o segundo que li do autor. Já conhecia Noturno do Chile, em que a junta militar golpista contrata um padre em formação para dar aulas de marxismo ao general Pinochet. Escritores e críticos são personagens comuns nos livros do autor. É assim em Putas assassinas, A pista de gelo, Amuleto, Llamadas telefónicas, La literatura nazi en América, Tres, 2666 e Estrella Distante, este último publicado em português agora em 2010.

Entre as duas primeiras leituras havia notado a semelhança entre os narradores García Madero e Sebastián Urrutia Lacroix, de Noturno do Chile, ambos jovens de formação erudita. Do primeiro, estudante de direito de 17 anos, lemos um diário iniciado no final de 1975, no calor da hora, quando se une ao grupo de poetas. Lacroix, por sua vez, lembra de quando era jovem, querendo iniciar uma carreira de poeta e crítico literário forjada nos estudos no seminário, e é procurado pelos golpistas.

Em 25 de agosto de 2009, escrevi sobre como o formato das dezenas de depoimentos que formam a segunda parte é um desdobramento de A pista de gelo, romance de 1993, em que três homens contam a alguém (um jornalista? um policial?) a história do mesmo assassinato. Em Tres, com relatos em poesia e prosa poética dos anos 80 e 90, lemos o embrião do detetive selvagem, a figura do detetive latinoamericano, que aparece também em Estrella distante (1996) que, por sua vez, tem origem em um miniperfil inventado de um poeta assassino (também de 1996).

Agora em 9 de março de 2010 inicio uma enumeração de novas ligações entre Os detetives selvagens, sua obra-prima, e os demais livros. Sem contar que a enumeração é uma técnica de Jorge Luis Borges das mais usadas por Bolaño.

Estão lá as ironias e referências a grandes autores da língua espanhola e da literatura mundial, espalhadas por outros livros, as irmãs poetas (também em Estrella distante), chamadas telefônicas não atendidas (Os detetives selvagens, Llamadas telefónicas, Tres), escritores assassinos (Estrella distante, 2666), tocaias em carros modelo Coyote (2666) ou Camaro (Os detetives selvagens), escritores que brigam entre si (o poeta de dois metros de altura que quer bater em Lima e Belano ou o autor fictício que quer atirar em Rubem Fonseca em La literatura nazi...), uma universidade mítica (a Universidade Desconhecida em Tres, a de Santa Teresa em 2666).

Essa repetição de temas ocorre em espiral, isto é, cada volta ocorre em outro nível, apresentando-se em uma nova configuração. A tocaia do cafetão em Os detetives... está apenas em três páginas e dá origem à perseguição e fuga pelo deserto na parte final do livro. Em 2666, tocaias ocorrem por todo o livro de mais de mil páginas, sendo um capítulo inteiro dedicado a sequestros e assassinatos em que as vítimas são transportadas em carros como os modelos acima. Da mesma forma, um episódio contado em um dos depoimentos de Os detetives... é o eixo principal de Amuleto. E por aí vai...

Não quer dizer que para entender um tenha-se que ter lido o outro. Não mesmo, a autonomia das histórias só se torna mais nítida conforme as leituras avançam e a diversão é garantida em todas elas.

Referências:
Roberto Bolaño
Os detetives selvagens. Tradução Eduardo Brandão. São Paulo: Companhia das Letras, 2006 (1ª ed. 1998).

Noturno no Chile. Tradução Eduardo Brandão. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

A pista de gelo. Tradução Eduardo Brandão. São Paulo: Companhia das Letras, 2007 (1ª ed. 1993).

Tres. Barcelona, Espanha: Acantilado, 2000.

La literatura nazi en América. Barcelona, Espanha: Seix Barral, 2008 (1ª ed. 1996).

Estrella distante. Barcelona: Anagrama, 2009 (1ª ed. 1996).

Llamadas telefónicas. Barcelona, Espanha: Anagrama, 2007 (1ª ed. 1997).

Amuleto. Tradução Eduardo Brandão. São Paulo: Companhia das Letras, 2008 (1ª ed. 1999).

Putas assassinas. Tradução Eduardo Brandão. São Paulo: Companhia das Letras, 2008 (1ª ed. 2001).

2666. Barcelona, Espanha: Anagrama, 2009 (1ª ed. 2004)


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