terça-feira, 29 de dezembro de 2009

Alessandro Atanes, para o PortoGente

Comecemos com as impressões de leitura da narradora-protagonista do conto A Natureza ri da cultura, de Milton Hatoum. Elas tratam de um relato de viagem escrito por seu professor de francês em Manaus. Ela recebeu o volume ainda jovem, quando se preparava para mudar para São Paulo em um navio que deixaria a capital amazonense rumo ao porto de Santos. Muitos anos depois, ela faz o seguinte comentário a Voyage sans fin (Viagem sem fim), o texto do professor:

Naquela época me pareceu um texto enigmático, mas a leitora de 1959 não é a leitora desta noite. Hoje, depois de relê-lo tantas vezes, soa como um manifesto poético de um narrador-personagem que abandona um país europeu para morar numa região equatorial. Com o passar do tempo, o personagem percebe, apreensivo, que o estigma de ser estrangeiro já é menos visível: algo no seu comportamento ou na sua voz se turvou, perdeu um pouco do relevo original. Nesse momento, as origens do estrangeiro sofrem um abalo. A viagem permite a convivência com o outro, e aí reside a confusão, fusão de origens, perda de alguma coisa, surgimento de outro olhar. Viajar, pergunta o personagem de Delatour [o professor francês], não é entregar-se ao ritual (ainda que simbólico) do canibalismo? Todo viajante, mesmo o mais esclarecido, corre o risco de julgar o outro. Consciente ou não, intencional ou superficial, o julgamento quase sempre deforma o rosto alheio, e esse rosto deformado espelha os horrores do estrangeiro. Nesse convívio com o estranho, o narrador privilegia o olhar: o desejo de possuir e ser possuído, a entrega e a rejeição, o temor de se perder no outro.

Primeiro nota-se o jogo de espelhos entre o narrador-personagem de Voyage sans fin e a narradora-protagonista do conto de Hatoum. Não estamos no Amazonas, estamos na literatura, e aqui tentamos perceber com a escrita literária capta a experiência do viajante.

Antes de ter recebido o relato de Delatour, a narradora revela o que tinha ouvido do professor:

Quando soube que eu queria morar em São Paulo, disse coisas que nunca esqueci: A viagem, além de tornar o ser humano mais silencioso, depura o olhar.

Na soma das duas passagens, a afirmação da viagem como algo muito distante do turismo e sua sucessão de lugares comuns. Ao contrário, a verdadeira viagem transfigura. E uma viagem literária transfiguradora como a de Delatour só pode ter início em um porto inusitado: Cancale, na Bretanha, que o professor de francês descreve como “um porto tão estranho que ninguém ou quase ninguém é capaz de deixá-lo”.

Em Cancale começa a travessia oceânica, uma travessia tempestuosa que termina num porto também estranho do hemisfério sul: um lugar sem nome, ilhado, habitado por pessoas que parecem resignadas ao confinamento e à clausura.

Esse porto, ainda que talvez não tenha sido Manaus, já é um porto amazônico e o impacto da descoberta tem reflexos na própria escrita do relato, isto é, transfigura a própria apreensão do mundo pela escrita.

O ritmo da frase altera-se bruscamente e a voz do personagem se torna um disparate gramatical e uma confusão de um louco vociferando em várias línguas*. São apenas doze linhas que destoam do relato, como uma breve festa de sons, ou uma explosão numa noite serena. Por causa desse trecho, nunca traduzi Viagem sem sim.

O asterisco no meio da citação leva a uma nota que informa sobre referências encontradas nesta parte do relato de dialetos usados por índios e caboclos do Amazonas que, na verdade, são “traduções” a partir das línguas nheengatu, tukano e baniwa. A estratégia do asterisco, usada anteriormente para dar informações bibliográficas sobre o texto do francês, leva o leitor desavisado a crer na existência de Delatour andando pela Manaus real. Ainda que o personagem tenha sido baseado em alguém de carne e osso que Hatoum conheceu ou ouviu falar ou que o relato tenha sido realmente publicado, os asteriscos têm a função de trazer o relato literário da viagem de um personagem para mais perto do leitor ou, quem sabe?, para confundi-lo, como fazia Borges com suas enumerações e citações de enciclopédias que não existem.

Os portos de Hatoum, talvez uma sugestão da vastidão amazônica, são de uma melancolia também imensa. Nos contos reunidos em A cidade ilhada, Manaus surge como um centro cosmopolita que reúne famílias libanesas e inglesas, biólogos em busca de espécies da região, mercadores, capitães de navios que adentram os labirintos de rios e selva, entre outras figuras, todas sob o calor e as Cinzas do Norte, um de seus romances.


A vastidão amazônica em imagem de Luiz Braga, cujas fotos são usadas nas capas dos livros de Milton Hatoum editados pela Companhia das Letras

Referências:

Milton Hatoum. A natureza ri da cultura. In: A cidade ilhada. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

Mais sobre o autor:
Milton Hatoum fala sobre portos e literatura, 08/09/2009
Os portos amazônicos na obra de Hatoum, 15/04/2008
Duas epígrafes portuárias, 01º/04/2008

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